O Barão das Palavras

A palavra obscurece a verdade, o contrário acontece ao mesmo tempo e com a mesma intensidade. Por que, então, os Heróis das Letras abusam das palavras? Sinceramente, os senhores das verdades verbais utilizam um código antigo que vai muito além do pensamento verborrágico ensimesmado dos perfeitos e sossegados mortais, filhos de um Platão de uma república sem poetas. Código criado para se manterem informados em quantas anda a miséria e mediocridade nas regiões despalavradas. 
 Existe uma terra cultivável em que nada cresce e o Barão das Palavras Calmas não entende o porquê. Mil anos se passaram e suas terras não deram frutos, muito menos vogais orais... Ele ecoa: “serenidade”, mas a ninfa morreu. “Estranho! Minhas palavras não frutificam onde reino”, disse o Barão de seu trono suportando o peso de sua cabeça com a mão. Ele invejara terras vocálicas, e principalmente as consonantais fricativas de um esplendor sem par, feroz em velocidade febril... Mais duzentos anos de tranquila reflexão e o Barão decidiu sair de seu trono e ir até suas terras para resolver mais este mistério craseado. 
 Lá estavam centenas, milhares de cabeças prontas para brotarem as primeiras vogais, consoantes e umas especiais prontas até para produzir dígrafos sem titubear. O Barão olha, reolha, transolha, perfolha, ouvolha, cheirolha e finalmente filosolha. As conclusões? Desanimadoras. Letras chamuscadas brotam da boca do Barão das Palavras Calmas até que ele percebe ao diolhar suas cabeças no campo: “É claro que não há exuberantes ramos de frases gerativas e textos discursados nestas paragens... As cacholas estão sem pensamento... Como não pude perceber isso antes?” O Barão com o dedo em riste se recostou numa das cabeças cadavéricas cujos buracos dos olhos estão fundos e enegrecidos de uma pasta amorfa anti-verbal, “Mas do que encher estas cabeças?”, saiu o Barão caminhando por cima da palavra caminho que ele mandou vir da cidade. Rodeado por todos os seus pensamentos-palavras acabou ficando tonto e caiu por cima de um monte de cabeças que rolaram todas sem sentido. “Pensamentos? Onde começam?” Fazia tanto tempo que o Barão tinha começado a pensar que se esqueceu como tudo começou. Sua cabeça ficou tão pesada de pensamentos-palavras que ficou encurvado. Até que a palavra coco caiu na sua cabeça... Infelizmente não conseguiu perceber qual substantivo voador fizera aquilo, pois sua cabeça estava tão pesada que não pôde erguê-la. De tanta raiva, palavras vermelhas pingavam de sua cabeça enquanto ele chutava um monte de cabeças inúteis dos seus campos. As cabeças cadavéricas sem pensamentos rolavam vazias. 
Um pensamento-gerador era o que o Barão precisava. Barão! Tentei dizer da minha narrativa, mas sem aspas minhas palavras não ganharam voz própria. “” Mas como poderia vencer a barreira da distância narrador-observador-personagem, se o narrador também está para morrer. “Barão!” Agora sim, nem foi tão difícil quanto pensei. Porém ele olhou descrente, achando que nenhuma voz poderia estar ecoando ali naquele campo de cabeças sem pensamentos. “Barão!” Tentei novamente. E ele desacreditou. Achou que outro pensamento brotava de sua cabeça sem seu consentimento. E ele martelava com sua própria palavra cabeça o chão riscado em letra de forma: “Como? Como? Como?” 
E todas as letras se bagunçaram. Desordem em ordem de demor morde demorde... “Barão!” Pela terceira vez. E ele finalmente percebeu que não havia somente ele naquele mundo de palavras vazias. E correu, correu e correu, chamando por mim. Era difícil responder, pois se para articular uns dígrafos era complicado, imagine as marcas do discurso. “Barão!” Ele novamente olhou e localizou o rumo de minhas palavras débeis. Chacoalhou algumas cabeças para ver se havia lá o pensamento, e sem êxito tombou perante a palavra descrença. “Barão!” E o novo ânimo metralhou o desanimo. E ele finalmente me achou. 
"Um pensamento em nascimento!” Ele vibrou. Pegou com todo o carinho. Seus olhos cheios de lágriamas cursivas. E eu gritei novamente: “Barão!” E ele sorriu: “É o primeiro fruto de meus sentidos.” Porém eu só conseguia articular Barão, Barão e Barão, sem nenhum outro êxito. O Barão das Palavras Calmas acabou me olhando e lembrou-se de um fato que aconteceu a nilhões de anos atrás. Um pensamento já havia surgido por aquelas paragens... Um pensamento fútil que gritava incansavelmente: “Perdão!” O Barão cuidou deles por décadas e décadas e ele só continuava a bravejar por perdão. Entretanto, sem misericórdia, o Barão estrangulou aquele pensamento. Algo mais complexo ali deveria ser desenvolvido, e o Barão das Palavras Calmas sentou em seu trono até esquecer aquele fato e novamente se relembrar que seu campo estava vazio, enquanto o dos seus outros vizinhos palavloridos. Seus olhos se fecharam, sua garganta entalou com a palavra hesitação, que logo foi engolida e derretida pelo suco verborrágico de seu estômago. E sem a mínima piedade, o Barão pegou minha cabeça e esmagou-a, pingando palavras-lágrimas. “Um dia terei pensamentos complexos por estes campos 
Nunca saberemos se estas palavras se encerram com uma interrogação ou um ponto final, pois já não pertenço mais àquele mundo de pensamentos-palavras tão complexos, pois ao lá morrer nasci neste mundo próprio para minha mente oca de sentidos. 

A Cabeça do Touro


I

Foi colocada nele uma marca sagrada e Ápis decretou: "Nascerá da Cabeça do Touro. Para que do Vigor não pense o contrário". Como animal manso recebeu o ferro de marcar em suas costas, não gritou, não murmurou, somente de seus olhos correu uma única lágrima que de tão discreta nem Ápis a percebeu. O criador assinalara a criatura e ele nasceu.

II

Entregou-lhe também um dom: adivinhar o palpitar do coração alheio. Não sabia o que fazer com aquilo. Não poderia se aproximar do outro e o outro já se abria em verdades. Poderia escolher como numa palheta de cores os sentimentos, conhecer sua existência, ouvir suas memórias, desvendar seus segredos, enfim, palpitava a outra vida em suas mãos.

III

Todas as vezes que encontrava um coração que palpitava acelerado, sua marca doía. Os homens sentiam medo e ele sentia dor. Sua vontade era oprimir os corações temerosos com suas mãos. Esmagando os corações medrosos, o mundo seria melhor. Esse era o ensinamento de Ápis. Seu dom fez sentido, sua marca não doeria.

IV

Esmagando corações temerosos com suas próprias mãos, iniciou uma transformação no mundo. Não haveria mais o medo e somente o Vigor prevaleceria sobre todas as pessoas. Cada coração esmagado era levado para Serapum e colocados um sobre os outros. Milhares de corações esmagados foram reunidos e formaram um muro, o Muro da Memória.

V

Ele sentou-se orgulhoso em frente ao Muro. Lá sua marca não doía. A memória do medo não lhe fazia mal, era o desvanecimento de tudo o que a dor representou. Satisfeito, caminhava pelo mundo, os homens o olhavam diretamente nos olhos e sabiam que ali estava a força que movia a nova vida. Seus chifres e olhos rubros não assustavam a ninguém, não havia necessidade.

VI

O significado das palavras temor e respeito se desvincularam. Não se relacionavam uma com a outra. Entretanto, outra guerra começou, escravos e senhores já não se entendiam. Todos queriam o poder, todos queriam o respeito. A memória do medo saiu do Muro e voltou ao coração dos homens. E ele novamente correu o mundo de volta a Serapum.

VII

Lá encontrou o touro negro pastando em frente ao Muro destruído. Agora, havia corações suficientes para construir um novo muro que certamente atingiria o firmamento. Ápis ordenou que acabasse com a guerra, sua marca doía... Onde estava o medo? Farejou cada coração em busca daquele sentimento. Sua missão recomeçara.

VIII

Do outro lado do mundo encontrou homens que não batalhavam pelo respeito, seu senhor era temido. Apesar da dor, permaneceu incógnito por longo tempo observando aqueles homens que viviam em paz. Enquanto descansava a beira de um lago, um rapaz o encontrou o qual teve medo diante de sua figura, porém, não sentiu sua marca. Ele olhou profundamente dentro dos olhos do rapaz e com seu coração nas mãos viu que além do medo havia ali um outro sentimento.

IX

Ele e o rapaz arderam de paixão e, finalmente, entendeu que sua missão não era esmagar corações, fazia aquilo por medo de Ápis e seu decreto. Outra lágrima correu de seus olhos, a qual prontamente foi secada pelo rapaz com suas vestes. Ele levantou e arrancou seus chifres com as mãos, o sangue banhou seu corpo e o insuflou de paixão e sua marca sumiu.

X

Lembrou-se da primeira lágrima que Ápis não percebeu e olhou para os homens. Não poderia ter nascido da Cabeça do Touro, somente daquele coração pelo qual se apaixonara. (Re)nascera daquele coração. Retornou ao muro e lá encontrou o criador. A criatura assinalara o criador com os chifres arrancados, da mesma maneira que fora assinalado. Ápis foi sacrificado e todos os homens, em luto, cortaram seus cabelos, poderiam, enfim, viver o medo.