A memória do outro

"E o senhor como se chama?"
"Espere, está na ponta da língua."
(Umberto Eco em A misteriosa chama da Rainha Loana)


Sem tempo para verdades

Aprendi a encarar a memória como uma narrativa. Quando alguém  lembra-se de algo que está em seu passado e traz à tona pela ato de rememorar e conta, utiliza-se de todos os aparatos narrativos: espaço, tempo, ação, personagens, mesmo que as instâncias sejam confusas, fosse mesmo preciso realizar muitas voltas temporais para se chegar ao fato que realmente deseja se lembrar ou muitos dos personagens sejam caros ao interlocutor, são todos expedientes da narrativa moderna. Lembrar, portanto, é narrar. E a narrativa, felizmente, sob este olhar crítico, é uma mentira. A representação na arte é um objeto afastado três vezes da verdade, como diria Platão em sua República, a verdade está na mente do criador, o artesão que faz o objeto o afasta uma vez da verdade e o pintor que o coloca representado num quadro, mentiu mais uma vez. Realmente é um perigo aos cidadãos, um perigo que só poderia afetar a república e seus "homens perfeitos". Lembrar, mais uma vez, é mentir ou narrar, mas nunca reviver. Um eu passado viveu e um eu atual reconta o vivido. Temos que separar o sujeito dessa forma, parti-lo em pelo menos duas partes, o eu atual e o eu passado, mas no próximo segundo, o eu atual já é diferente daquele que o eu do segundo anterior, então duas partes se tornam três e assim sucessivamente, tornando o sujeito múltiplo, ou como quero agora, plural. Essa pluralidade do sujeito não o torna menos a si mesmo, pelo contrário, somente o reafirma, pelas muitas singularidades que o compõe. Erro seria acreditar na unidade de si mesmo, como se o homem pudesse ser entendido e observado de um único lance, de uma única vez. O eu atual lembra-se segundo seus interesses, segundo suas vontades, segundo suas necessidades, de acordo com a construção atual de si mesmo e, para tanto, o tempo precisa ser repensado.
Repensar o tempo é necessário para fazer da memória não uma prisão, como muitos fazem ao viver do passado, ou simplesmente tornar o tempo um desejo, aqueles que só pensam no futuro, e sim tornar o tempo um caminhar eterno. O tempo que é encarado com produtividade, aquele tempo que caminha sem ponto de partida ou de chegada, se baseia na seguinte proposta: não existe passado, presente ou futuro. Essa proposta não busca anular a existência do tempo, mas sim procurar um novo relacionamento com cada instância temporal. É preciso negar neste exato momento o tempo clássico e todas as suas implicações. O hoje é o ponto de produtividade e seu ato é o caminhar. Essa metáfora tem uma necessidade: caminhar sem olhar para o ponto que se partiu ou mesmo sem pensar no ponto de chegada é poder se importar somente com o hoje: o passado deixa de paralisar o sujeito e o futuro deixa de ser uma elaboração constante, um desejo. Influenciado pelo passado e direcionado para o futuro, o tempo é, portanto, considerado como um todo. Traz-se o passado e o futuro para o presente, precisam ser elaborados em conjunto. Lembra-se de algo simplesmente para viver o hoje; as experiências, os traumas, as explorações da memória tem uma única e total utilidade: o hoje. O passado nos ensinou algo para ser repetido ou nunca mais realizado e tomar essas atitudes torna o caminhar mais preciso. Dessa forma, não é possível reviver o passado, somente reinventá-lo pela narrativa que se faz dele, e já o disse, é uma mentira. O eu atual ao relembrar utiliza-se do como se é hoje para resgatar o que deseja do passado e o reconta pelos expedientes narrativos que utiliza. E o nosso interesse pela memória, como veremos, é a possibilidade de aprender com a experiência alheia, verdadeira na sua mentira ou mentirosa na sua possível verdade.

As mentiras memoráveis

Já se acreditou que realmente se revivia o passado pela memória, as narrativas autobiográficas traziam o passado de volta. Já se acreditou mesmo que se poderia voltar ao passado para poder se alterar o futuro, é a máquina do tempo de H. G. Wells . Já se questionou até o tempo ao se relembrar, são as palavras de Santo Agostinho. A memória já foi até verdade, recuperação exata do vivido, dizia um pacto que para se ter autobiografia era preciso compactuar com a verdade. Hoje, até mente-se que viveu ou lembra-se um passado que nunca existiu ou que só poderia ter existido. Sempre me questiono: isso sempre aconteceu e nunca havíamos aceitado tal fato? Lembrar é mentir, é dizer o que o eu atual elabora do eu passado. O tempo pretérito é uma convenção perante o presente, uma marca que diz que algo aconteceu antes do agora, nada mais, nada menos, as narrativas inventadas se utilizam desse recurso para contar a sua verdade. A memória se utiliza desse recurso para contar a sua mentira.
Toda a memória é, portanto, inventada, nunca houve uma recuperação exata do passado por mais que seu autor ou seus teóricos ou críticos acreditassem nisso. Eles também mentiam para si mesmos, queriam acreditar na verdade baseada num único ponto de vista. A palavra e seus usos não permitem tal acontecimento, porque quando se reelabora o passado pela narrativa, o passado não é o que mais interessa, mas sim o hoje. E isso se dá por duas vias: uma para o próprio autor e outra para o leitor. O autor reinventa a si mesmo para expressar o que seu eu atual tem a dizer do vivido e reinventa para poder se atualizar. Justifica-se, atualiza-se e emoldura-se, assim o passado modifica o hoje pela reinvenção de si mesmo. E nosso interesse como leitor deste passado reelaborado é a curiosidade necessária de toda e qualquer história: ela tem algo a nos mostrar do ser humano. O romance, numa consideração generalista, nos mostra uma sociedade inteira, por mais que seja centrada numa única personagem. A autobiografia, a biografia ou essas escritas de si, tenha o nome que tiver, ou seja, qualquer manifestação de um eu que parece ser real, servem para, a partir de um único ser, uma única e específica elaboração, abrir nossos olhos para algo mais geral, mais amplo: o ser humano que em sua especificidade pode ensinar a todos, pelo menos que seja uma única lição, mesmo que seja para ser negada, aceita ou refletida. A literatura tem essa e outras funções.

A memória cultural

Umberto Eco, crítico e escritor italiano, em seu romance A misteriosa chama da Rainha Loana (La misteriosa fiamma della Regina Loana, 2004) traz em seu bojo uma interessante discussão sobre a memória como narrativa e a narrativa como memória. Yambo, a personagem central, perde sua memória num acidente automobilístico e numa tentativa de resgate de suas próprias lembranças acaba por resgatar somente a memória que existe dentro de cada um de nós: a memória cultural. Yambo tenta lembrar-se de sua esposa, de seus filhos, de sua própria história, mas somente lembra-se dos livros que leu ou das músicas que ouviu. "Não estou apenas desmemoriado, mas talvez viva agora de memórias fictícias. Gratarolo [amigo de Yambo] mencionara a possibilidadde de que, em casos como o meu, a pessoa inventasse retalhos de passado que nunca viveu realmente, só para ter a impressão de recordar. Terei pego Sibilla como pretexto?" (p. 67) Esse é Yambo que se questiona o tempo todo se está realmente obtendo êxito em sua demanda de recuperação de sua memória ou se está somente perdendo tempo recriando algo em sua mente que os outros lembram para ele. É o caso de Sibilla ser sua amante, como ele poderia confirmar tal fato que não fosse somente acreditar nas palavras do amigo que lhe a indicou nessa condição? A impossibilidade de reativar sua memória pelos vários exercícios e tentativas dos famíliares e amigos são todas improdutivas, nada o faz relembrar, o que vem a sua mente são os livros que leu, citações e mais citações que se amontoam numa mente cheia de lembranças alheias: "Disse a mim mesmo: Yambo, você tem uma memória de papel. Nâo de neurônios, de páginas." (p. 92). Primeiro são as páginas da literatura ocidental que recheiam a memória de Yambo, mais tarde, numa nova tentativa são os objetos culturais que enchem a cabeça das crianças: histórias em quadrinhos, livros de literatura infanto-juvenil e as canções. Para tanto, ele resolve voltar para Solara, o lugar da sua infância, e lá encontra tudo o que seu avô havia guardado no sotão:

Compreendi que aqueles dias no sótão foram mal empregados: reli páginas que folheara aos seis ou doze anos, outras aos quinze, comovendo-me a cada vez com histórias diferentes. Não é assim que se reconstrói uma memória. A memória amalgama, corrige, transforma, é verdade, mas raramente confunde as distâncias cronológicas, uma pessoa deve saber muito bem se uma situação qualquer lhe aconteceu sete ou dez anos antes, eu também distinguia o dia do despertar no hospital do dia da partida para Solara, e sabia muito bem que entre um e outro houve uma maturação, um mudar de opiniões, um confronto de experiências. Mas, ao contrário, naquelas três semanas eu absorvera tudo como se, menino, tivesse engolido tudo de uma só vez e num só fôlego - e, claro, tinha impressão de estar entorpecido por causa de uma beberagem inebriante. (160)
Desesperado por recuperar sua memória e o que ela significa, ele quer concordar com a verdade que há na lembrança e na exatidão temporal de uma memória, porém o que ele estava vivendo provou exatamente o contrário: sua infância foi engolida de uma única vez. Todas aquelas lembranças perderam-se no tempo, ou melhor, perderam-se numa possível exatidão do tempo: elas funcionam a maneira de um ouroboros, a serpente que morde sua própria cauda tornando o tempo infinito pela forma circular:

Aprende-se ainda criança a metafícia do infinito e o cálculo infinitesimal, só não se sabe ainda o que está intuindo, e poderia ser a imagem de um Regresso Sem Fim, ou, ao contrário, a horrível promessa do Eterno Retorno e do volver de idades que se mordem as caudas, pois alcançada a última caixa (a maneira das matriosckas), se uma última houvesse, talvez no fundo daquele vórtice se descobrisse a si mesmo com a caixa do ínício nas mãos. (p. 125)

Ao recuperar lembranças fictícias de seu passado, não era ele quem lembrava, mas os outros que lhe apontavam os objetos de sua infância, com todas as caixas do sótão ele descobriu-se mais perdido do que quando começou este insano processo representado pelas matriosckas ouroboros. O momento exato de quando leu um gibi ou ouviu uma canção deixou de ter importância, a recuperação do seu passado por um daqueles objetos se tornou impossível: todas as crianças como ele haviam lido ou ouvido as mesmas coisas e enfrentado aquela mesma época do fascismo em que os discursos institucionalizados celebravam o Duce e os de oposição criavam super-heróis que poderiam se não salvar o mundo da tirania, poderiam descolar seus sonhadores leitores para um mundo melhor onde imperava uma justiça fantasiosa. Ele era mais um entre tantos outros, tinha uma construção subjetiva formada pelo o que os familiares que impunham ou o que a escola lhe mostrou que era o certo: "Tudo o que descobri foi o que lera, mas assim como tantos outros leram. A isso reduzia-se toda a minha arqueologia: à exceção da história do copo inquebrável de uma espirituosa anedota sobre meu avô (mas não sobre mim), eu não revivera a minha infância, mas aquela de toda uma geração" (272). E de geração em geração, a humanidade toda e sua história é formada pelos bens culturais que guardamos pelos livros ou imagens, são conhecimentos que passam de uma geração a outra, são reformados ou resgatados, pois cada um desses objetos resiste ao tempo. E ao resistirem criam uma memória maior, não do sujeito, mas de toda a coletividade, mesmo em tempos sem escritas era a partir da fala que todo esse conhecimento resistia, passando de pai para filho. O livro e sua durabilidade somente fez com que essa memória se ampliasse e se diversificasse, como também o sujeito pode perceber-se plural com tantos passados diferentes de si mesmo. É a palavra que resiste, e não somente ela, mas também a linguagem e todas as suas formas de expressão. A linguagem é a única herança durável e imaterial que passamos de uma geração para a outra, e como disse Hölderlin: a linguagem é uma herança perigosa.
"E se restassem apenas e sempre e ainda palavras, a confundir ainda mais os meus neurônios doentes sem acionar a troca desconhecida que daria livre curso a minhas lembranças mais verdadeiras e escondidas? Que fazer? Lenin na poltrona branca da sala de estar. Talvez eu tenha errado tudo, e errou tudo Paola [sua esposa] também: sem voltar a Solara permaneceria semente perdido, voltando, podia sair de lá louco" (157). Não era possível recuperar seu passado, a palavra era tudo o que lhe havia restado, e é o que resta para cada um de nós, é a nossa herança, só lembramos através das palavras de nossas narrativas do passado. Por exemplo, uma foto de alguns anos atrás é uma narrativa, podemos perguntar: qual era o lugar? Quem são as pessoas? O que estavam fazendo? São perguntas intermináveis. Uma fotografia narra um romance inteiro de lembranças que podemos recriar com as palavras.
Além das discussões políticas promovidas por cada uma das leituras da personagem central, temos um recurso estético notável: nós mesmos ao ler o romance tornamo-nos Yambo e entendemos suas dúvidas e angústia. Se folhearmos o livro é possível perceber uma grande quantidade de ilustrações, é um romance ilustrado como consta na capa do próprio livro, são reproduções de quadrinhos, cartazes, ilustrações de livros, capas de livros, fac-símiles de jornais, selos e transcrições de canções, além de montagens de diversas imagens (principalmente na parte final). Com a leitura do livro cada uma das ilustrações se contextualiza e nós entendemos o que passa Yambo em sua desesperada tentativa de recuperação da memória. Há duas maneiras de contextualização: ou vemos a ilustração e não entendemos porque ela apareceu e em poucas páginas ela é relembrada por Yambo, ou é comentada no texto e algumas páginas (ou muitas páginas) depois a ilustração aparece. Yambo havia visto cada uma dessas referências em sua infância e quando colocava seus olhos novamente nesses objetos somente se lembrava de que já havia visto aquilo antes. Nós procedemos da mesma maneira, ora ouvimos falar do objeto para depois vê-lo, ora nós o vemos para somente depois lê-lo referido na narrativa. Dessa forma, o gosto de possuir o objeto já possuído também é experimentado pelo leitor, assim, tomamos posse da memória do outro. A memória de Yambo também é nossa, da mesma maneira para aqueles que leram os clássico que ele menciona na primeira parte e se emocionam por terem lido os mesmos livros. Entretanto, é preciso propor uma questão: "Se faz isso para divertir os meninos [...] é uma coisa, do contrário está se identificando demais com aquilo que lê e isso é pegar emprestada a memória de outra pessoa. Tem clareza da distância entre você e essas histórias?" (165). A pergunta poderia ser feita para nós mesmos: temos clareza da distância daquilo que lemos, assistimos ou ouvimos de nós mesmos? Mas para além disso: essa distância é realmente necessária? Esses objetos fazem parte de nossa formação plural e é o que nos faz compartilhar algo humano entre todos os seres humanos, é a nossa memória coletiva, cultural.

Conclusões

Não quero tratar do fim do romance, a leitura do livro como um todo, e espero que este ensaio possa atiçar a curiosidade de qualquer interessado, é preciosa e construtiva, não só para a questão da memória, mas muitas outras. Entretanto, quero tirar de minha elaboração duas questões:

1. Não podemos viver do passado, ou sofrê-lo, isso paralisa o homem e o impede de avançar na descoberta de novas experiências para si mesmo, ou seja, os traumas do passado quando não reelaborados de forma produtiva para o presente não permitem que o homem dê o próximo passo na direção de novos traumas que logo também se tornarão passado, e assim por diante, neste eterno caminhar proposto. Da mesma forma, não é possível paralisar-se no desejo de um futuro que não se realiza a não ser pelas ações do hoje. E para além dessas obviedades: "a memória é o porvir", é o que diz Jacques Derrida: tudo o que foi construído no passado tem uma implicação no futuro (porvir, por-vir). Ao tomarmos posse de nossa perigosa herança, a linguagem, temos que usufruí-la de maneira produtiva: o que vamos fazer com o que aprendemos do passado pelas reelaborações que realizamos a todos os instantes e como essas reelaborações alteram de alguma forma o nosso caminhar para o porvir inalcançável? É preciso uma reflexiva relação do sujeito com o tempo, e partir desse relacionamento, depende somente dele aceitar e entender sua própria pluralidade, e assim, o tempo deixará de paralisar aquele que caminha e o fará "imortal", como nos diz Fernando Pessoa, não mais seremos determinado pelo tempo.

2. Seja de nossa própria memória ou da memória do outro, privada (as histórias-mentiras que ouvimos de amigos ou familiares) ou pública (caso das escritas de si que curiosos lemos) temos que tirar dali uma lição, ou uma política da memória. É possível aprender com a diferença da pluralidade de cada sujeito seja público ou privado com o qual nos relacionamos pelas palavras? Existe na memória do outro (e nos mesmos somos um outro quando relembramos, já somos um outro de nós mesmos) a possibilidade de se criar um mundo melhor, se não melhor, mais justo a partir de todo o aprendizado com as experiências, traumas e explorações alheias que nos é legada todos os dias pelo nossos olhos e ouvidos? A aceitação dessa possibilidade é a recusa de todo o esquecimento provocado do passado, esquecimentos estes que só nos trazem uma falsa melhora, uma falsa justiça, porque enquanto aquele que foi esquecido não puder ter voz e ser lembrado, nunca teremos uma ética da diferença, é o próprio Eco que nos propõe: "Recordar é bom também [...]. Alguém que disse que a recordação age como uma lente convergente numa câmara escura: concentra tudo e a imagem que resulta é muito mais bela que o original." (p. 30)

ECO, Umberto. A misteriosa chama da rainha Loana - romance ilustrado (trad. Eliana Aguiar). Rio de Janeiro: Record, 2005).

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