O colecionador de fragmentos

"Escrever por fragmentos: os fragmentos são então pedras sobre o contorno do círculo: espalho-me à roda: todo o meu pequeno universo em migalhas; no centro, o quê?" (Roland Barthes por Roland Barthes)
Fernando, à frente do espelho, sempre cobria com uma das mãos a face e semi se apreciava. Não encontrava ali a beleza nem a feiura, encontrava algo estranho. O estranho que admirava. Muitas vezes, mergulhava em seu próprio descoberto e permanecia ali por muitos minutos. Os minutos passavam em horas e cada parte descoberta fazia sentido em si. Um olho lhe dizia uma verdade, enquanto a bochecha lhe dizia outra. O queixo desmentia cada uma das verdade já ditas, e ele cobria uma nova parte ao descobrir uma outra verdade. Isso porque somente analisava seu próprio rosto.
A água sobre seu corpo já havia secado. O frescor da sua pele era mascarado pelo perfume e outros cheiros cosméticos, que cada parte sua exigia para poder manter uma outra verdade mascarada. Ele se preparava para dormir.
O dia de trabalho fora pouco produtivo, sentiu-se esgotado, o ritual do banho revigorou suas forças e o colocava inteiro em suas partes descobertas. Deitou-se em sua cama, não gostava nem um pouco de roupas, o clima ameno o permitia dormir nu. Olhando para o teto, sentia-se oprimido, lembrava da sua infância, das muitas vezes que passou suas férias escolares na fazenda, dormia sob o olhar da Lua. Não havia dormido sem roupas nos acampamentos que sua mãe organizou na fazenda... deveria voltar a fazenda somente para poder realizar este sonho, teria de ser numa noite de verão, preferencialmente sob a Lua Cheia para que tudo esteja bem iluminado, exatamente como numa noite em que viu seus amigos de infância tomarem banho pelados no açude há poucos metros de onde haviam escolhido para o acampamento daquelas férias. A água gelada, a noite clara, a alegria, as gargalhadas.
Sorriu, deveria ter sido menos tímido, não... deveria ter nunca desejado um dos seus amigos, não fora banhar-se por vergonha, vergonha por ser descoberto por suas vergonhas descobertas. Uma parte que revelaria muitas verdades de um adolescente que nunca se despira diante outros adolescentes.
Sentiu-se despedaçado, quantos amigos daquela época ainda tinha a sua volta? Quantos realmente eram amigos? A fazenda nas férias era algo que atraia os outros jovens para sua companhia... Sua mãe sempre organizara todos os acampamentos, já lhe cobravam por volta de outubro algo que sua mãe já tinha planejado desde agosto. Tentou enumerar nomes, poucos lhe vieram a mente, e muitos outros foram esquecidos. O fim da vida escolar geralmente marca a vida de muitos, os quais preservam os amigos para o resto da vida, Fernando era diferente, afastou-se dos amigos na primeira semana do fim do Ensino Médio, sua mãe decidiu que ele iria para a Escócia com seus tios antes de começar a universidade. Não ligou, não mandou e-mails, não distribuiu fotos pelas redes sociais, isolou-se de trás do muro de Adriano. Ficou um ano incomunicável, os amigos tomaram seus rumos e esqueceram-se do tímido Fernando... certamente lembravam dos acampamentos.
A Escócia não lhe serviu de nada, absorveu um sotaque insuportável que nem lhe dava vontade de falar inglês. Chacota entre os colegas do trabalho, decidiu por emudecer sua segunda língua, era como se nunca tivesse pisado em solo estrangeiro. Enviara três e-mails para uma empresa americana nesta tarde com a qual fechou negócio, sabia escrever muito bem. Se morasse um ano nos Estados Unidos perderia seu sotaque? Ou seria tratado de forma mais preconceituosa ainda? Estrangeiro brasileiro com sotaque escocês? Sua língua mataria aquela oportunidade de se abster do trabalho por alguns meses.
Afastou da mente aquela ideia que já lhe havia sido ofertada pelo chefe do escritório americano. Lembrava de um amigo em especial, Leon, o mais velho daquela turma escolar, quantas vezes foram a fazenda juntos? Ele estava no banho noturno? Não! Certamente nem teria dúvidas... Leon gostava do mato e dos bichos, seria biólogo ou médico veterinário, estaria agora em alguma fazenda cuidando de animais de grande porte, tomando banhos nus em riachos. A Lua seria sua única testemunha. Aquele monolho teria só para si a mais admirável verdade.
A manhã seguinte seria terrível, reunião para definir os próximos investimentos do escritório. Horas intermináveis de números minuciosos. E para piorar seria uma webconferência com a filial do nordeste. Sotaques e sotaques. Era óbvia sua escolha para os investimentos, sempre fora um conservador reservado, mas a batalha seria pelo risco que todos queriam correr com o dinheiro alheio. Irritação em sotaques errados. Deveria pensar em algo para distrair-se depois da reunião... A fazenda seria uma ótima opção se não fosse quinta-feira. Seus tios deveriam estar viajando, e lá somente haveria os caseiros e teria toda a liberdade, o açude pela noite... Amanhã é quinta-feira, não sexta! Carina e um café, certamente seriam uma distração e já que havia lembrado de Leon poderia saber de seu paradeiro. Sabia que você é a unica pessoa da época da escola que eu ainda tenho contato? Depois que voltei da Escócia dei a sorte de você ser minha veterana no curso de Administração. Lembra das férias na fazenda dos meus tios? Certamente não se lembraria, fora somente uma única vez e daquela vez sua tia não permitiu as meninas irem para o acampamento, eram poucas e haviam camas e quartos para todas. Por isso, os meninos tomaram banho sob a claridade da Lua Cheia... Leon não estava lá naquela noite, mas todos estudaram juntos, beberam juntos na comemoração-despedida do fim do Ensino Médio e início de sua longa estada fora do país.
Pôs a mão sobre um olho, o teto não era menos opressor... Levantou-se e abriu a janela, lá estava a Lua, crescente, um sorriso, não teve vontade de sorrir para ela. Mesmo que matasse o trabalho na sexta não teria seu sonho nu sob a Lua Cheia realizado. Deitou-se com Leon... qual seria o nome do veterinário que atendia a fazenda de seus tios? A Lua Cheia, Leon e o açude. E a reunião de amanhã... Queria afastar este pensamento por um pensamento já afastado, nem era a Lua que desejara... quem sabe na semana que vem? O vento fresco que entrava pela janela fez-lhe cobrir-se, deixando somente sua barriga de fora. Ali havia uma verdade desmentida por descobrir-se a perna, e o braço quando apareceu descontou todas as verdades, ditas e desmentidas.
Precisava ir ao banheiro. De pé, em frente ao vaso sanitário, conseguia ver seu rosto, seu cabelo já estava desgrenhado de tanto rolar na cama. O teto o oprimia mais uma vez. Era hora de retornar a fazenda, mesmo que não fosse Lua Cheia. Cobriu todo o corpo, inclusive a cabeça, não queria ver ou desmentir nenhuma verdade, a única coisa que desejava era dormir, melhor, esquecer todos aqueles pensamentos somente conectados pela opressão do teto.
Rolou tanto na cama que o lençol enrolou-se em sua cintura. Muitas verdades foram descobertas: jamais se encontraria com Leon novamente, o veterinário dos tios era baiano com um sotaque enfraquecido pela convivência com os caipiras do centro do país, nunca mais falaria inglês por vergonha, e o teto continuamente iria oprimi-lo... Já era cinco e meia da manhã e seu despertador começava a tocar, anunciando menos um dia em sua vida.

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