O exílio, uma doença incurável

Dante no exílio


Savez-vous pourquoi une vague tristesse s'empare parfois de vos coeurs et vous fait trouver la vie si amère? C'est votre Esprit qui aspire au bonheur et à la liberté, et qui, rivé au corps qui lui sert de prison, s'épuise en vains efforts pour en sortir. Mais, en voyant qu'ils sont inutiles, il tombe dans le découragement, et le corps subissant son influence, la langueur, l'abattement et une sorte d'apathie s'emparent de vous, et vous vous trouvez malheureux. (François de Genéve em L´Evangile selon le Spiritisme)

A palavra exílio desassossegou-me em algumas conversas semana passada, cada uma ofereceu-me um contexto diferente, cada uma com sua própria necessidade e significado. Essa profusão de sentidos, chegou mesmo a confundir o que vem a ser o exílio, tirando-o do seu lugar comum. Tenha o significado que tiver, o soar desta palavra provoca-me um estado de ruptura com a existência. Todos possuem um certo exílio, mesmo que não acreditem ou não queiram acreditar. É um sentimento necessário e produtivo, mostra-me o real significado de existir e do debater-se com a vida. Janice, no primeiro conto de Exílio e o Reino de Albert Camus, "A mulher adúltera", sente este exílio no próprio corpo ao viajar com o marido, Marcel, ela precisa de ar, precisa ouvir um chamado mudo, precisa ser livre:
Logo uma angústia sem nome invadiu-a. Desvencilhou-se de Marcel. Não, ela não superava nada, não era feliz, ia morrer, na verdade sem se ter liberado. O coração doía-lhe, sufocava sob um imenso peso que, de repente, descobriu que arrastava havia 20 anos, e sob o qual se debatia agora com todas as forças. Queria libertar-se, mesmo se Marcel ou os outros jamais o conseguissem. Desperta, ergueu-se na cama e aguçou o ouvido a um chamado que lhe pareceu bem próximo. Mas, dos extremos da noite, só lhe chegavam as vozes extenuadas e incansáveis dos cães do oásis. Um vento fraco se erguera e ela ouvia suas águas ligeiras correrem no palmeiral. Vinha do sul, lá onde o deserto e a noite se confundiam agora sob o céu novamente fixo, lá onde a vida parava, onde ninguém mais envelhecia ou morria. Em seguida, as águas do vento emudeceram, e ela nem mesmo teve certeza de ter ouvido algo, a não ser um chamado mudo que bem podia fazer calar ou ouvir, à sua vontade, mas cujo significado jamais conheceria, se não atendesse naquele instante. Sim, naquele instante - isso ao menos era certo! Levantou-se suavemente e ficou imóvel, junto à cama, atenta à respiração do marido. Marcel dormia. O calor da cama logo a deixou, e o frio se apossou dela. Vestiu-se lentamente, procurando as roupas às cegas, na luz fraca que chegava dos lampiões da rua através das persianas. Segurando os sapatos, foi até a porta. Esperou um momento ainda na obscuridade e depois abriu a porta cuidadosamente. O trinco rangeu, ela se imobilizou. O coração batia loucamente. Aguçou o ouvido, e, tranquilizada pelo silêncio, girou um pouco mais a maçaneta. Esse movimento de rotação lhe pareceu interminável. Abriu, finalmente, deslizou para fora e tornou a fechar a porta com as mesmas precauções. Depois, com a face colada à madeira, esperou. Ao fim de uns instantes, ouviu, longínqua, a respiração de Marcel. Voltou-se, recebeu no rosto ar gelado da noite e correu ao longo da galeria. [...] (Albert Camus em O Exílio e o Reino)
Janice sente essa angústia inominável. Seu exílio é lido por meio de uma longa lista de sentimentos correlatos: solidão, melancolia, saudade, languidez, depressão, insatisfação, nostalgia. O tédio expresso por todo o conto é patente na vida de Janice, faz com que chegue a esta decisiva cena e sinta-se nessa prisão, esse ostracismo que ela mesmo consignou a si mesma, "um peso que arrastava havia 20 anos". Era consciente do lugar em que se colocara, procurava uma certa felicidade que certamente encontraria num casamento, porém, como qualquer outra ilusão, não encontrou e se acomodou, e dessa forma encostou um punhal chamado insatisfação velada em seu peito que oprime e pesa de forma invisível mesmo sem rasgar a pele.  Mas, sua vontade é de libertar-se, de sair desse lugar que a incomoda à procura de outro que possa pelo menos a satisfazer em sua ânsia, liberdade essa que significa, num olhar mais demorado, um risco, um desacomodar: o calor a abandona e precisa enfrentar o frio do deserto, onde ninguém envelhece ou morre. A movimentação de Janice não termina aqui, é somente o momento em que decide enfrentar esse sentimento inominável. 
O exílio stritu sensu é debater-se com a diferença espacial do lugar que não lhe pertence, porém, há um exílio lato sensu, o qual estou elaborando, que se cria dentro do ser humano mesmo permanecendo no lugar que é seu, é o caso de Janice, ela não sente essa angústia inominável somente porque está em viagem com o marido, debatendo-se com a diferença, ela carrega isso há vinte anos, esse exílio está no próprio corpo, não existia e ali se desenvolveu.
O exílio e seus sentimentos correlatos tratam do não pertencimento a qualquer lugar em que se esteja, mesmo que este lugar seja a terra natal, a cidade em que cresceu, a casa que viu envelhecer com o tempo. Nada te acomoda, nada te conforta, poderia no passado até ter confortado ilusoriamente. Não é uma simples questão de espaço, é para além dela, pode estar no próprio corpo, não se acomoda dentro de si, é estar preso a um fardo pelos pés no fundo de um lago e sufocar, muitas vezes se pode perceber o brilho da Lua, mas não se pode sair do corpo e libertar-se. E é para além do corpo, é um aprisionamento mental, é não se sentir bem intelectualmente, é sentir a décadence. Ou, um último exílio, o temporal, é estar preso a um tempo que não te pertence, é desejar o passado ou um futuro, tanto distante quanto próximo. Enfim, é não pertercer e não possuir lugar, seja o espaço, o corpo, a mente ou o tempo.
Não é preciso ser estrangeiro para se sentir fora de um lugar. Muitas vezes, a cidade natal pode se tornar o lugar do não pertencimento, principalmente, quando seu horizonte de expectativas vai se ampliando a ponto de seu lugar não mais corresponder, não mais afetar ou mesmo satisfazer. O exílio não estava ali, criou-se ou desenvolveu-se silenciosamente, não foi necessário se deslocar, é um ato de tornar-se estrangeiro sem se movimentar. Deseja-se uma experiência que o lugar natal não pode mais oferecer, mesmo que tente o valorizar, mesmo que tente tirar dele uma virtude que ele não possui. O embate com a diferença se estabeleceu sem deslocamentos porque se diferenciou-se do seu lugar, o desconforto desenvolveu-se debaixo do próprio nariz.
O exílio corporal está relacionado com o não pertencimento pessoal, o seu lugar-corpo não lhe corresponde e sua vontade é estar em outro corpo, é desejar viver uma outra vida que ao menos satisfaça algumas necessidades íntimas, ou mesmo, numa visão mais cética, é não querer estar neste corpo, é não estar em corpo algum, é desejar uma liberdade tão grande em que fosse possível abarcar o mundo todo e tudo o que ele tem a oferecer com um único olhar, é ser mais do que um ser humano, é ser o Outro com todas as consequências que isso implica.
A mente se recusa a participar daquilo que desconsidera. Ela aspira pelo o que choca ou pelo que faz mover. Os olhos estão cansados de ver as mesmas coisas, as mesmas atitudes, as mesmas representações. Anseia por uma outra mente que possa desafiar sua própria constituição, sua própria concepção de mundo. É dessa maneira que se cria o exílio dentro de si. É tornar-se, aos poucos, décadent à maneira de Nietzsche, é saber-se doente e conhecer milimetricamente o que isso significa, é "[...] da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence - este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vim a ser mestre, foi nisso. Agora tenho-o na mão, tenho mão bastante para deslocar perspectivas: razão primeira porque talvez somente para mim seja possível uma 'tresvaloração dos valores".Nenhum médico curou Nietzsche, foi ele mesmo que se curou no isolamento: "Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso - qualquer fisiólogo admitirá - é ser no fundo sadio". Sentir-se exilado é estar doente de uma doença incurável por saber-se que no fundo é são, e por ser tão são ou lúcido perante a ilusão que se adquire essa doença, deita-se na cama da desilusão que tem em seu corpo o vírus terminal e incurável do exílio.
O tempo determina o homem, faz dele limitado e mortal. Esta é a análise de Eduardo Lourenço de alguns poemas de Fernando Pessoa, em sua Mitologia da Saudade, "[...] por ser naturalmente 'divina', a alma é naturalmente imortal. Quer dizer, fora do tempo. Tempo e espaço são as formas originais da Queda da alma no corpo. São o próprio corpo, incapaz de se pensar como alma, como manifestação primordial da Unidade, única realidade, mesmo que não possamos pensá-la senão na ordem da pura ausência." Só se pode ser imortal quando se vence a opressão do tempo. O presente, o passado ou o futuro deixa de fazer sentido para que o lance do olhar seja não sobre o tempo, mas sobre a vida. Nesse lance que não permite que as determinações do tempo façam o objeto observado envelhecer, ser a própria memória do momento passado ou do momento por-vir, desejando algo que não existou ou mesmo que nunca existirá.
Depois de algumas peripécias, Janice, finalmente, atinge o deserto, de onde vinha aquele chamado mudo:
Nenhum sopro, nenhum ruído, a não ser, às vezes, o crepitar abafado das pedras que o frio reduzia a areia, vinha perturbar a solidão e o silêncio que cercavam Janice. Momentos depois, no entanto, pareceu-lhe que uma espécie de gravidade giratória atraía o céu acima dela. Na densidão da noite seca e fria, milhares de estrelas se formavam sem trégua, e seus cristais reluzentes logo se desligavam dela para deslizar insensivelmente em direção ao horizonte. Janice não conseguia se arrancar à contemplação desses fogos à deriva. Girava com eles, e o mesmo caminhar imóvel unia-a, pouco a pouco, ao seu ser mais profundo, onde o frio e o desejo agora se combatiam. Diante dela, as estrelas caíam uma a uma, depois extinguiam-se entre as pedras do deserto. a vida demente ou imobilizada, a longa angústia de viver e morrer. Depois de tantos anos durante os quais, fugindo de medo, correra loucamente sem objetivo, finalmente ela se detinha. Parecia que encontrara suas raízes, a seiva tornava a subir em seu corpo, que já não tremia. Comprimida com toda a força de encontro ao parapeito, estendida na direção do céu em movimento, esperava apenas que também o seu coração, ainda transtornado, se acalmasse e que se fizesse silêncio dentro dela. As últimas estrelas  das constelações deixaram cair seus cachos um pouco mais abaixo no horizonte deserto, e se imobilizaram. Então, com a suavidade insuportável, a água da noite começou a encher Janice, submergindo o frio e elevando-se pouco a pouco do centro obscuro de seu ser, para transbordar em ondas ininterruptas até a boca cheia de gemidos. No instante que se seguiu, todo o céu se estendia acima dela, voltado sobre a terra fria. (Albert Camus em O Exílio e o Reino).
Janice desejava somente correr loucamente sem objetivo, fugir do exílio que a oprimia, queria encontrar suas raízes no nada, no vazio, no inexistente, só desejava ouvir o silêncio, a calma do coração. Se integrou com algo maior: o firmamento e suas estrelas, o mundo se tornou pequeno, mais um exílio haveria de desenvolver-se dentro dela. O coração voltaria a palpitar, essa pequena epifânia somente mostrou que essa doença é incurável, não há nada de errado nela, é sã. O exílio promove os incessantes deslocamentos, seja físico ou de perspectivas. Embate e deseja a diferença, pode parecer contraditório, mas não desejar a diferença e viver dela são os sintomas de qualquer um que se deitou na cama da desilusão cuja consequência imediata é descobrir-se são e por isso mesmo desejar mais e mais a diferença. Um exílio leva ao outro, é ser conscientemente estrangeiro em qualquer lugar que se pise. Sentir-se exilado em qualquer uma das instâncias apresentadas, espacial, corporal, mental ou temporal, é saber que algo faltará sempre, é uma busca de algo que o suplemente ou lhe corresponda mesmo sabendo que em poucos instantes isso não lhe suplementará mais ou mesmo lhe corresponderá. Trata-se, portanto, de um idealismo irrealizável, uma utopia desvivível. Sentir-se exilado é saber que algo destitui todo o tempo, seja no lugar que for.
Dessa forma, sentir-se exilado é querer não estar neste mundo, ele não te conforta, é querer chegar ao momento final para que tudo deixe de não fazer sentido, é calar o que te incomoda. Mentira. O exílio é o que mantém o homem em movimento, é uma virtude, não está no rol das misérias que sofre o homem que deseja mais. Pelo contrário, são os exilados, e somente eles, que fizeram o globo girar mais uma vez, suas mentes inquietas são forças de trabalho incessante que promovem a mudança, a diferença e o choque na existência  e que torna o mundo todos os dias um lugar confortável para mais uma vez tornar-se desconfortável, um ciclo interminável, como a vida do homem insatisfeito e imortal. Janice retorna para o lado do marido: "ela chorava, com todas as lágrimas, sem conseguir controlar-se" e diz: "Não é nada, querido, [...], não é nada".

Coelho Branco - My Brightest Diamond (tradução)


Aprendi uma magia cantante,
talvez tenha aprendido com minha mãe
quando eu era pequenino,
porque, desde então, ela nunca mais se curou.

Até mesmo nos dias de verão, ela poderia reclamar.
Ela não conseguiu viver sem aquele calafrio nos ossos,
talvez porque eu tenha aprendido dela a magia...
Quando eu era bem pequenino,
eu a coloquei sob a luz do sol.

Todos os coelhos foram abatidos para a ceia.
Todos os coelhos foram abatidos sob o holofote.

Eu conheci uma magia que poderia cantar.
Oh, meu querido, como era bela.
E por algum mistério desconhecido, ela olhou para mim
como se vestisse algo transparente...

Magia, estás desaparecendo?
Estás desvanecendo aos poucos?
Estás esmorecendo sob os holofotes?

Magia, estás desaparecendo?
Todos os coelhos morreram... estás desvanecendo?
Estás esmorecendo sob os holofotes?
Meu coelho branco mágico, estás desaparecendo?

Pedagogia da Leitura

para Felipe, pela sugestão da atividade com meus alunos

Na condição de professor de Língua Portuguesa na escola pública, firmei um compromisso comigo mesmo: o de incentivar por todo e qualquer meio a leitura e a fruição do texto, não somente mas principalmente do texto literário. E no começo deste ano a Escola solicitou aos professores de todas as disciplinas que realizassem uma avaliação diagnóstica com os alunos para percebermos quais as dificuldades e as proficiências dos alunos. Realizei nas primeiras semanas de aula a seguinte proposta de atividade: a leitura e a discussão do ensaio Em defesa do Romance de Mário Vargas Llosa e a apreciação do filme Fahrenheit 451 de François Truffaut. A aproximação dos dois, não só serviu como atividade diagnóstica para os alunos, como suscitou algumas reflexões sobre a questão da leitura na escola e uma pedagogia da leitura.
O ensaio de Llosa, publicado na Revista Piauí 37, além de defender o próprio romance e seus escritores, dentre eles Cervantes, Shakespeare, Dante, Tolstoi, Proust, Flaubert, Borges, Orwell, trata de diversas questões para poder chegar a seu objetivo: como o romance modifica e age no ser humano. A defesa do romance ou da literatura e de sua função humanizadora é baseada na função estética relacionada com a percepção do fato humano expresso pela arte e de como essa percepção pode fazer o sujeito refletir qualquer problemática humana via a atividade artística, no caso, a escrita. A literatura tem entre suas diversas funções essa possibilidade, representa por meio de sua diegese questões humanas por meio da individualização de uma situação que envolve alguns personagens no seu espaço e no tempo, porém essa situação individualizadora se torna universal à medida que o leitor se utiliza da literatura para si, para compreensão do que é o valor humano e do que há de humano expresso na história narrada. Um exemplo: que melhor obra para entendermos a estrutura das relações amorosas poderiamos ter do que em Mulheres Apaixonadas de D.H. Lawrence? Suas quatro personagens centrais ao se relacionar fazem-nos entender as diversas maneiras que a paixão pode acontecer e qual a relação do amor com o ódio, isto é só um exemplo de leitura, uma generalização, um recorte de uma obra tão plural. O sentimento das quatro personagens podem estar muito afastado do leitor, não responder as suas expectativas, mas promove no leitor uma reflexão sobre a maneira como elas constroem e desconstroem o amor, e isto modifica, amplia ou faz com que o leitor duvide de sua concepção de amor ou relacionamento.
O que Llosa defende é que sem essa atividade artística literária haveria uma animalização do sujeito, visto que o que o torna diferente da natureza é essa possibilidade de individualização e universalização simultânea pela arte: "[...] uma sociedade sem romances [...] está condenada a se barbarizar no plano espiritual e a pôr em risco a própria liberdade". Imaginar uma sociedade sem romances não é algo tão miraculoso, tão afastado de nós. O romance, ou diminuindo o nível de exigência e generalizando o gênero pela palavra leitura, é muitas vezes inexistente para uma parcela considerável da sociedade. Para se verificar esta situação é somente se questionar: quantos livros leu este ano? (Não que haja a necessidade de uma quota mínima de leitura anual,  pois o importante é a qualidade dessa leitura). Ou quantos desses escritores citados por Llosa já teve sob seus olhos? Se o problema da leitura estivesse somente restrito a leitura literária ou da alta literatura teríamos que reconsiderar a problemática, porém, essa falta de leitura se estende por todos os campos, da leitura técnica a qual cada um deveria realizar em sua respectiva área ou mesmo a leitura da masscult, best-sellers e livros afins. Llosa também defende a alta cultura, seus valores e sua ideologia, entretanto, o problema da leitura é maior, principalmente quando considero meus alunos, envolve a questão do hábito de leitura na sociedade e suas consequências.
O filme de Truffaut suplementou, dentro do recorte que selecionei, o ensaio de Llosa, e pude para além disso, mostrar aos meus alunos algumas situações que nós vivemos por não sermos leitores. Quero citar dois exemplos que chocaram os alunos pela maneira que pus uma lente de aumento naquelas situações: ver a grama crescer e falar com a tv. Os bombeiros que trabalham em Fahrenheit 451 queimam os livros por fazerem mal a sociedade lobotomizada pela falta de cultura e prendem qualquer pessoa que se atreva a possuir ou ler os livros. Em uma cena, logo no começo do filme, o chefe dos bombeiros pergunta para Montag, personagem principal, o que ele faria se o proibissem de cortar a grama, a resposta da personagem expressa a submissão acrítica do sujeito que não conhece outra possibilidade que a leitura, por exemplo, poderia oferecer: "veria crescer!" Ver crescer a grama torna-se a representação do ato de todos os habitantes daquela sociedade sem livros, se submetem a qualquer mando e desmando superior visto que não conhecem outra possibilidade de existência e realmente acreditam que o que o seu superior pensa é o certo para todos, acredita-se que esse superior pensa no bem-estar geral e na justiça para todos, entretanto, não é o que acontece. Em uma outra cena a esposa de Montag conversa com a televisão respondendo perguntas evasivas acreditando participar do programa televisivo. A cena, além de mostrar o engodo que a tv representa na vida das pessoas, demonstra como aquelas personagens que se se submetem ao comando superior acreditam serem indivíduos únicos, mas que não passam de massa facilmente manobrável. Perguntei aos meus alunos se eles já tinham falado com a tv e, obviamente, eles disseram que não, porém provei o contrário: eles falam com a tv ao discutir o que se passa nela quando não estão em frente do aparelho televisor, ao comprar os produtos que ela vende, ao acreditar e propagar cegamente as opiniões que ela dispõe ao telespectador... Falamos com a tv o tempo todo, esse meio de comunicação tornou-se aquele superior que nos obriga a ver a grama crescer e ser feliz dessa forma por não conhecermos outras possibilidades. O recorte que fiz no ensaio de Llosa trata exatamente desta questão: a liberdade que a literatura nos devolve por uma insatisfação com o status quo social:

"A boa literatura, enquanto aplaca momentaneamente a insatisfação humana, incrementa-a e, fazendo que se desenvolva uma sensibilidade inconformista em relação a vida, torna os seres humanos mais aptos para a infelicidade. Viver insatisfeito, em luta contra a existência, significa empenhar-se [...]. Isso é provavelmente verdadeiro: mas também é verdadeiro que, sem a revolta contra a mediocridade e a sordidez da vida, nós, seres humanos, ainda viveríamos em condições primitivas, a história teria acabado, não teria nascido o individuo, a ciência e a tecnologia não existiria, porque tudo isso nasceu de atos de insubmissão contra uma vida percebida como insuficiente e intolerável". 

Entendo, valorizo e aprecio a ideologia inserida na alta literatura, entretanto, quando trabalho a questão da literatura em sala de aula preciso ampliar meu horizonte de expectativas, por isso quero acreditar numa pedagogia da leitura, um processo em que se insere a leitura no contexto do aluno e pontualmente incrementa-se o nível de exigência para, enfim, alcançar-se, em primeiro lugar, um gosto pela leitura, e depois, o entendimento do valor ideológico inserido nela. A disciplina de Língua Portuguesa oferece esse leque de possibilidades, visto que é naquele momento que ganho meu aluno, momento em que a jovial curiosidade dos alunos aliada com uma tática de encantamento que a leitura de textos instigantes, mesmo que mais simples, pode oferecer . O problema da leitura em sala de aula, na visão dos alunos, é a questão da obrigatoriedade da leitura e da apreciação de textos que não despertam seu interesse. Não é possível exigir deles a leitura de Ulysses de James Joyce sendo que a estrutura do romance não está em sua cabeça e nela não faz sentido algum, como se essa fosse a única exigência para se iniciar na obra desse escritor. A minha pedagogia da leitura diz que é preciso começar com textos mais simples para assegurar o interesse e a necessidade de narrativas mais complexas, de desafios maiores e, acima de qualquer coisa, é preciso seguir a lição poundiana: ler com e para os alunos.  O que se tem exigido dos alunos é ler um livro qualquer em um tempo x. Os alunos levam o livro para casa, não sabem nada sobre o livro (um possível encantamento inicial, muitas vezes é esquecido) e não tem vontade de lê-lo. O tempo x expira e quase ninguém leu a obra. Faço questão de "perder" uma hora semanal para sentar com meus alunos e ler com eles as obras que selecionei. E é ouvindo a sua leitura ou mesmo lendo para eles que construo todo um encantamento com relação a leitura e o que aquela obra tem a significar. Mas, as obras escolhidas são  maçantes e difíceis... se assim o fosse não me exigiriam a hora da leitura. O que é maçante na leitura é a forma com que acontece seu processo, se mediamos a leitura, e este é meu papel como professor nesse compromisso, ganho o aluno e para além disso: ele se torna autônomo em pouco tempo, quer ter aquele mesmo prazer de ler de forma independente do meu olhar, quer ganhar a sua própria liberdade e não mais aceitar que é preciso ver a grama crescer ou responder perguntas evasivas da televisão.