A senhora Hermann e vovô já em travessura.

[revisto em fevereiro de 2013]

Seu nome ecoava por todo o casarão, dois pisos vibravam ao som da voz do vovô Hermann. O grito cadavérico e rouco não perturbavam os bem treinados ouvidos da senhora Hermann, suas mãos não tremiam ao ouvir seu nome, continuavam a tricotar levemente, como se nada houvesse acontecido. A casa demovia-se, ainda não havia se acostumado com a presença inóspita do morador. Terminada aquela volta no trabalho delicado que suas mãos finas realizavam, juntou a linha com a agulha e depositou-as na cesta ao lado de sua confortável poltrona. Levantou-se levemente, com as mãos espalmadas retirou os fiapos de seu vestido etério e seguiu pelas escadas um degrau de cada vez em direção ao quarto de seu pai. Quando seus passos foram ouvidos no assoalho, novamente o grito ecoara. "Não vê que se eu estivesse morrendo, teria somente encontrado um cadáver inerte?" Qualquer desculpa aos seus ouvidos não surtiriam efeito, desde que deitara naquela cama, o mundo passou a girar em torno dele e por mais que os filhos da senhora Hermann lhe houvesse pedido para contratar um enfermeira para vovô, ela não se importava de realizar aquele serviço, acostumada com as intempéries de seu caráter, não tinha motivos para desgastar seus filhos. As suas reclamações pararam de surtir efeito: "O que deseja, vovô?" aquelas palavras saíam de forma cantante de seus lábios enquanto suas mãos abriam as pesadas cortinas do quarto pela primeira vez naquele dia. "Tenho noventa e oito anos e já não posso mais levantar desta imunda cama que agora é minha mortalha..." Olhou para o lado direito, enquanto tentava lembrar o que desejava, viu seu livro, um copo d'água, seus óculos e uma xícara de chá vazia. "Traga meus remédios, já passou da hora. Lembra-se que dr. Andrade disse-nos que meus remédios não podem esperar, precisam ser ministrados exatamente nas horas determinadas!" Hermann olhava a filha como se ela fosse uma pessoa leviana, que preferia vê-lo morto do que atender ao pedido de um moribundo. A senhora riu, muito solícita, e desceu as escadas lentamente. No balcão da cozinha havia uma lista de remédios e seus respectivos horários, olhou o relógio de pulso, apreciou o ponteiro dos segundos deslizar lentamente realizando uma volta completa em si mesmo. O tempo era exatamente daquela forma, por mais que se movesse, sempre voltava ao mesmo ponto de partida. O relógio não demarcava que o tempo avançava, mas demonstrava sinceramente como todos os segundos eram exatamente iguais. Selecionou os comprimidos colocou-os num pires, arrumou uma bandeja com uma garrafa e um copo. Levou-a sem pressa até o quarto do pai. O quarto estava escuro. Depositou a bandeja no criado-mudo e novamente abriu a cortina, sem repreensão ou interesse. "Preferiria morrer a dar-te todo esse trabalho, sabes muito bem disso? Não é, minha querida?" Virou o rosto em direção ao velhinho que tomava uma pílula atrás da outra. Ele a olhou de soslaio, vendo seu sorriso que não parecia forçado, corou. "Não se esqueça de trazer-me o jornal quando subir novamente, no próximo horário dos medicamentos", novamente desceu sem pressa. Desta vez seguiu para a biblioteca, olhou os livros como se perscrutasse fantasmas. Arrepiou-se. Escolheu um grosso volume de capa dura e sentou-se. Folheou as páginas e parou na presença do capítulo XXXI, leu o primeiro parágrafo e sorriu. Sim, ele a abraçava, com uma força necessária, os dois estavam ainda por testar o amor que sentiam um pelo outro. Tudo é muito leve no começo de um relacionamento, pensava cada um deles, ao mesmo tempo que gostariam que pudessem afirmar que o outro realmente o amava da forma que distribuía seu próprio amor. Ela riu, o livro agora era como um escudo pousado em sua barriga, e o escudo se chacoalhava ao sabor da leve gargalhada. Suspirou, parecia cansada de rir da desnecessária preocupação das jovens personagens, continuou a leitura e suspirou mais uma vez, agora sim, cada um tinha a certeza absoluta do amor que um nutria pelo outro. Sentiu-se feliz por um instante, todas as preocupações se foram, enquanto eles se beijavam em entrega total. Viu-se com quinze anos novamente, vovô Hermann era um homem altivo e impunha presença, todos os rapazes da rua morriam de medo de serem estrangulados por aquelas mãos pesadas e grandes. O poder do olhar de vovô poderia matar um pequeno bem-te-vi em milésimos de segundos, dizia os boatos na rua. Já que nenhum deles tinha coragem de lhe falar, era a senhorita Hermann que andava pelas ruas aos risinhos para encantá-los com seu caminhar diáfano. Mas a presença diabólica de seu pai precedia seu trotar pelas calçadas e todos os rapazes se escondiam de sua beleza exultante... Sorriu amargamente, todos eles se casaram e se foram. A palavra beijo, namoro ou casamento eram proibidas dentro da casa dos Hermann, tabu especial que só poderia ser resolvido dentro dos quartos aos cochichos, assim se casou sem saber com quem exatamente estava se unindo... a única certeza que tinha era que... seu nome ressoava novamente pela casa, cada livro tremia com as vibrações do grito do vovô Hermann. Sorriu enquanto subia, o quarto novamente escurecido foi iluminado pela reabertura das cortinas. "Quero que reúna seus filhos, preciso ter com eles antes de deixar essa vida amargurada que passo ao teu lado", ela não se abalou, "Sinto-me um fantasma nesta casa, preciso arrastar correntes para poder ser percebido e merecer tua atenção." Da última vez que havia dito aquela frase, complementou dizendo que sentia que sua morte seria tal como um exorcismo na mente de sua descuidada filha, visto que o velho fantasma desapareceria de vez. Garantiu também, que ela não herdaria absolutamente nada, tudo passaria às mãos dos netos, estes sim, saberiam o valor que aquele velho possuía e utilizariam cada centavo de sua fortuna com perspicácia, sem romantismos ou pensamentos comunistas. "As duas personagens ainda se amarão ternamente por mais dois ou três capítulos? Não lembro..." era o que pensava enquanto dizia que ligaria para seus filhos, convidando-os a jantar: "Celebram a minha morte! Não ouviu que quero vê-los porque sinto que estou partindo?" Enquanto resmungava outras palavras já ininteligíveis aos ouvidos da senhora Hermann, descia as escadas e pegara sua agenda telefônica, procedeu como sempre, ligou primeiro para o filho mais velho e seguiu até ouvir a voz do caçula. Reaberto o livro, leu em voz alta mais dois capítulos, entregou-se àquele amor incondicional que somente os jovens poderiam viver. Lembrou-se da única certeza que abandonara nos últimos capítulos: o noivo que se atrevesse a casar-se com a senhorita Hermann ou era muito corajoso ou muito medroso. Realmente não sabia se seu defunto marido havia pedido sua mão em casamento ou se ela por inteira teria sido oferecida num bazar qualquer de alcoviteiras. Riu-se, mais uma vez, o jovem casal já se despedaçava em desesperanças com a paixão que morria no último capítulo. Uma frase mordaz dita pela mulher ao amado encerrava a obra, pensou que poderia ter repetido o mesmo dito ao seu próprio marido se ele houvesse retornado da guerra... Mas não teve a oportunidade, ele não tinha a presença de seu pai que vencera tantas guerras, principalmente aquela guerra que levou sua mãe ao suicídio. Tinha certeza que a carta endereçada ao pai ainda palpitava em alguma caixa escondida no cofre atrás do retrato da mãe que ainda hipnotizava-a. "Seus netos estão a caminho, e não ficam para o jantar" dizia enquanto abria as cortinas mais uma vez, "Não será hoje que celebraremos a morte, quem sabe na semana que vêm? Ou mesmo daqui a cinco anos?"

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