Sonoramente inerte

De sonhos estranhos para a realidade brutal, fui arrancado dos braços da morte para minha cama, como se acordar fosse uma salvação. O relógio piscava três da manhã ao me dizer que de agora em diante não há mais sono. Descansa um, enquanto o outro perece. Levantei e peguei o cachecol. Chaves e um papel. Abri a porta cuidadosamente para não acordar demônios piores que geralmente encontro pelas ruas. O portão sempre rangia, e rangeu tão lenta e furiosamente naquele silêncio que dois olhos de gato se abriram na noite. Era meu acompanhante, não tinha outra opção. Ganhei a esquina de minha casa, não havia mais ninguém, somente os roncos, os gemidos e os poucos prazeres da noite. Desci a rua calmamente, era toda minha e das estrelas que de uma forma fantasmática davam vida as poucas nuvens que ousavam cruzar o céu tão vagarosamente que parecia que eu não estava a andar. Me acompanharam por quadras até a única luz acesa. Um velório pela madrugada, tão comum quanto a vida que só tem sentido pela morte. Passei pelo outro lado da rua, o caixão estava à vista... mas não havia ninguém a chorar pelo defunto. Olhei mais uma vez... nem mesmos os funcionários da funerária estavam lá. Os olhos brilharam. Eu entrei. Um caixão, nenhuma coroa de flores, um violino sobre o morto, ninguém. Era somente o morto, a morte e eu. Serenamente vidrado meus olhos se apossaram da inércia mortificada. Pele lisa, cabelos bem penteados, rosto quadrado, nariz perfeitamente pontudo, lábios finos. Tenho certeza que seus olhos eram profundamente verdes. Uma das mãos delicadas seguravam suavemente o violino e a outra debilmente o arco. Os dedos finos demonstravam habilidade, as unhas perfeitamente aparadas. Um corpo esguio, poderia vê-lo tocando, mas meu acompanhante via mais. Seus olhos, agora em fenda devido à luz, mesmo que fraca da funerária, incomodados, pois estão acostumados com a noite, me convidavam para um mundo passado. Acreditava-o músico de renome, mas não. Tocava violino em funerais como aquele que estava solitariamente presente. Engano meu. Tocava em funerais mortificantes, cheios de intenções e mofa. Todos de preto, muitos ternos, muitas joias, muito brilho fúnebre, muita gente mais interessada na vida que sobrou do que no morto. Heranças, lembranças, novos olhares, novos contatos. “Este é o pai do nosso querido amigo, dono das indústrias que lhe falei...”, “Minhas condolências, este é meu cartão!” Sua música jamais desafinou, nunca faltou ao emprego, viu todos os vereadores, grandes chefões do tráfico, atores globais, escritores de best-sellers serem enterrados ali sob suas notas mais tristes entre risos contidos pela forma aguda de suas cordas. Viu esposas chorarem enquanto procuravam os telefones dos advogados... mas também viu vexames, desconhecidos chorarem sinceramente pelo morto, viu coisas estranhas, viu até mesmo um enterro faraônico onde seu violino era mais um entre trinta. Os olhos fendados gargalharam, olhou ao redor e só viu a mim e não escutou nenhum violino, nem música triste ou acordes fúnebres. Só havia minha respiração oscilante e o chiado da lâmpada quase por se esgotar. Toquei sua mão, sua morte deve ter sido muito tranquila feita de nadas sobre o vazio, os olhos a me reprovar... Tocaria violino se eu soubesse, mas disse palavras desconexas rapidamente rabiscadas no papel, nem para me condoer pelo distante eu era capaz. Tudo era fingimento, falsidade. Morre-se todos os dias, todas as horas, todos os segundos, entrega-se a terra nada mais que o velho gasto corpo perecível para que seja reaproveitado para reanimar a grama que irá esverdear sua lápide. Os olhos se fecharam, eu subi a rua solitário, nem as estrelas a me acompanhar, já amanhecia e as primeiras lutas já se desdobravam, o carro da funerária subiu lentamente passando por mim. Seguia em direção ao cemitério municipal. Não era indigente, eu sabia seu nome, Frederico Andrade (1985-2010), enterrado em vida por animar a morte. Invisível como qualquer outro fantasma. Silencioso porque não tocou nenhum coração com suas vibrações musicais. Sonoramente inerte. Mais um belo instrumento musical desperdiçado.

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