Dos poetas natimortos

Mais uma incursão nos mundos dos mortos ao qual ainda estou me habituando. Uma pequena cosmologia do mundo dos espectros, um treinamento para algo maior que ainda deverá devir. Desta vez fui incumbido de cuidar de um muro que tem crescido vertiginosamente desde a minha última morte. Nele coloco um tipo muito específico de fantasma, que habilmente aprendi a identificar no mundo... Alguns poetas já nascem mortos. Natimortos antivivos, falo com segurança deles, pois do lado de cá da sensibilidade não há necessidade de sinceridade ou falsidade, tudo o é, simplesmente . Eles se empilham formando um muro, um muro inconsciente... E hoje, falo em nome deles, porque (in)felizmente, devo viver de seu fracasso, tudo é um grande mercado no mundo dos mortos, eu cuido deles e eles me oferecem o que eu mais preciso. Cuido de um muro de desalento desverdadeiro invisível para sobreviver. Lá, eles bradam más rimas... não é um muro muito silencioso, é feito de fala, e não de escrita. Cada um deles quer atingir violentamente os sentidos, mas, sem o perceber, só violentam a sua própria imagem, se esquecem que se escreve do mal para o choque da ansiedade e da desvirtude. Falam com ódio e esquecem que só se escreve com a performance do ódio, da ilusão de sentir... Toda literatura mente e eles só falam verdades. A literatura pulsa falsidade e somente desnecessidade. E ontem ao caminhar pela província dos vivos, recolhi um caso interessante, vou retirá-lo do muro e comprovar o que falo. Não posso citar o seu nome... não faria sentido algum,não é um nome próprio, é um despropósito. Aos 21 anos ousou dizer-se poeta sem mesmo publicar, olhei-o de soslaio, mesmo assim insistiu. Deixei-o seguir para ver onde pretendia chegar, seu destino era certo, um muro invisível e audível, mas felizmente ele não o sabia. Passou a insistentemente a falar de um livro, a bradar uma ideia aos quatros ventos. Porém os ventos não carregam verdades bradadas, não sem a minha autorização. Falou tanto desse livro que se esqueceu de sentar e escrevê-lo. Todos os adoravam pela sua magnífica ideia. Foi por vezes quase premiado, sentiu o gosto da vitória. Gargalhei ao recolhê-lo, nunca animei poeta que procurasse vitória. Errou no que lhe faria conjunto, errou no que eu o animaria. Sua ideia já foi esquecida, não se tornou mentira, tornou-se verdade, senso-comum. De palavras e não de ideias é feito o escrito, já dizia o poeta ao pintor. Porém ao olhar este moribundo gritador de verdades, percebo que hoje já não é assim, é-se poeta somente pelas ideias, um público assim o determina. Espero que tenham entendido porque não mais animo ninguém. Poderia tirar dezenas desses poetas do muro. Um igual ao outro, um inspirado no outro, sem nenhum trabalho, sem nenhuma palavra deitada sobre a folha virgem, sem nenhuma corrupção. O poeta está por nascer, e pacientemente o espero. Não há desejo nesta espera. Morto o desejo nasce o poeta. Assim o era, visto que fui Rimbaud, já fui tantos outros, mas não importa o escrito, suas consequências, ou mesmo os nomes. O que importa é que esses natimortos ainda se proliferem, hoje vivo de seu fracasso. E que fracassem mais e mais. O poeta que nasce do desejo morto, ele não tem nada que me alimente. Aqui, do lado de cá dos sentidos, eles não fazem sentido, já se fez e se autoconsumiu, tenho que animá-los antes de se acabarem. Sorte dos que ainda estão aí ao seu lado... Eles podem se alimentar do sentido inacabável. Da obra e da energia sem desejo do criador. Ao olhar mais uma vez para esse poeta que recoloco no muro me lembro de quando o recolhi... era tão fixado nessa única ideia que nem gosto tinha, estava autoconsumido sem glória. Deveria ter escolhido outro fracasso, pelo menos um mais apetitoso.

Uivo voraz

Doze uivos vorazes
Todos encantadoramente horrendos
Performam o medo nos indolentes
Farejam o mal dos tempos
Em campos ineficazes
Fadados a uma busca incessante
Desejam liberdade da demanda

Perderam o mais precioso
O mais belo
O mais incerto
Procuram por procurar

Onze uivos vorazes
Somente um pode terminar
O que mil começaram
Terminam por se destruírem
Ou destroem para terminar
Este um, tutano de mil
Saberá onde a demanda termina
Saberá onde cavar
Saberá onde meter o seu focinho
E encontrará
O que todos juntos não puderam achar

Não falo de lobos
Nem de homens animalizados
Falo do improvável
De indestrutível
Do escamoteado

Cinco uivos vorazes
Está perto do fim
Não há culpa
Nem prazer
Deglutir é necessário
Indivisível
Vasto

Não há filosofia
Nem criação artística
É ato de desespero total

Um uivo voraz
A demanda não terminou
Nem tudo tem começo, meio ou fim
Tudo tem caminho
E caminhar
Nada além de uivos demandados
Nada além de desejos (i)realizáveis
O último uivar é amedrontador
É faminto
A demanda o consumiu
Como se o consumir não fosse um fim

Só resta a origem
E o ato
Ou resto de atos originários
Purgaram a si mesmos
Da forma como se purga a fome
E a fome nos consome

Monstros noturnos

Acordo. É um péssimo começo. Coço os olhos, é um primeiro ato vazio. Viro-me, é o estar lá mesmo sem o querer. É como se eu pudesse ver o futuro sem o sabê-lo. Por enquanto, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Acordar todos os dias com um monstro diferente é algo inverossímil, mas necessário. Todos os dias durmo com uma dúvida, todos os dias durmo com a incerteza. Todas as noites me consomem como se fosse a última. Não tenho esperanças de voltar a viver no outro dia. Tenho certeza que morrerei dormindo. É um monstro noturno que vai me sufocar e vai me livrar de todos os outros monstros e vai me consumir até eu não ter mais força espectral para seguir em frente e simplesmente deixar de existir, como sempre desejei.

Um deles, me perturba em especial, digo o nome porque seu nome é que o fará com que eu seja mais forte para vencê-lo. Avah-má, ele sussurra seu nome ao soprar a fricativa no meu ouvido e por mais que meus olhos estivessem abertos, a noite é obscura, não havia conseguido ver sua face. Meu corpo estremecia, mas confesso, não era medo. Não tenho medo de monstros noturnos, não há monstros noturnos que eu não consiga exorcizar. Sua voz rouca, sua textura sonsual me consome os sentidos, me arrepia os pelos do corpo, me fazem estremecer de um prazer monstruoso. Sua voz é a primeira coisa que sinto, seus dedos de unhas compridas a segunda, elas correm por minhas costas, seu corpo sonoro começa a se perfazer sobre o meu, o meu arrepio já não está mais lá. Há outra coisa, outro sentido.

Ontem resolvi enfrentá-lo. Não... não quero exorcizá-lo... não agora, por que não aproveitar esse monstro que me perturba de uma forma tão especial? Deixo existir, uma permissão permissiva. Senti o som de sua voz no meu ouvido. Sussurrou, tocou. Abri os olhos e me virei. Ele já estava sobre meu corpo arrepiado. Segurei-o pelo braço, e finalmente pude ver seu rosto, sentir as propriedades de sua pele, a sonoridade de seu coração pulsando sangue pelo corpo. Ele foi pego de surpresa, apesar de conhecer minha fama de exorcista noturno de incertezas relevantes. Arregalou seus olhos verdes, seus traços finos me assombraram. A pele não era pálida como dos outros espectros que tinham o costume de me visitar, era morena, de um teor, de um matiz, de uma sonoridade estridente.

Não tentou fugir, era audaz também, passado o primeiro susto, o primeiro arrepio, nos sentimos confortáveis a ponto de sorrirmos um para o outro e ver dentro dos olhos de cada um o desejo classificável, ele queria minhas forças, eu queria sua vontade. Pousando sobre mim, ele me permitiu sentir outras pulsações, outras texturas, outras virtudes. Sorri sem graça, há ainda alguns recalques sobre mim.

Ele me mostrou sua mão, colocou entre nossos rostos, girou-a no eixo como a me mostrar a palma e as costas do seu objetivo. Olhei sinceramente para seus dedos, suas articulações, sua maestria manual. Colocou a palma de sua mão sobre meu peito. Coloquei minha mão nas costas das suas. Palma e costas unidas. Avah-má era mais esperto que eu. Era o desejo por sua pessoa que o fazia especial, e ele sabia disso. Deslizou sua mão sobre meu peito, e no amontoado de pelos do lado esquerdo, cravou suas unhas grossas, metalizadas. Não senti dor, somente um prazer inenarrável, estava enredado em seu objetivo, e gostava disso. Quanto mais encrava suas garras em meu peito, mais eu sentia meu coração pulsar. O sangue quente escorria pelo meu peito, a me reconfortar, caia em meus lençóis, encharcando meu ninho. Não reagi, mas mesmo assim, entrelaçou minhas pernas com as suas, novas texturas, novas pulsações, velhas virtudes. Seu abraço violento, me tirou o ar do peito. O sorriso em sua face era de satisfação. No cume de sua aniquilação ele não pode perceber meus dedos permeando sua barriga, a procurar seu umbigo. Meu dedo ali penetrou, e ele não sentiu o meu domínio sobre seu prazer. Só percebeu que já não possuía vontade, quando sua mão não conseguiu se fechar sobre meu coração. Piscou duas vezes a se aperceber do ocorrido, seu sorriso malicioso se desfez em espanto. Não há mostro noturnos que eu não consiga exorcizar, por enquanto. Meu domínio é ser dominado, e ao ser dominado, dou a falsa impressão de domínio. Sua vontade escorria por entre meus dedos. Ele muito sério, tentou soltar meu coração, mas minha pulsividade segurava cada dedo, cada articulação, cada sentido. Sorri, não de prazer, mas de domínio dominado.

Avah-má merecia outra noite comigo, retirei meu dedo de seu umbigo, de seu centro, e cordis larguei sua mão. A expressão de alívio foi sonora ao falar meu nome de forma cansada. Marcus. (In)felizmente não se exorciza os vivos, e enquanto eu permanecer aqui, com o mínimo de sangue sendo bombeado por meu coração amassado, eu ouvirei meu nome sendo pronunciado de muitas formas, desejosas ou não. Joguei Avah-má da cama, caiu no chão e pronunciei o velho encantamento, ele correu de volta para as sombras de onde saiu. Monstros noturnos me servem de mote vital. Viral. Sempre durmo com uma incerteza, e acordo como um péssimo começo, porque só gosto da noite, só gozo no exorcismo total. Me espere.