Nirvana

A hora da minha morte chegou, um momento esperado como qualquer outro. Mas como eu poderia saber? Muitos se perguntariam... É um momento, é único, nem todos possuem o mesmo direito sobre si próprio. É como se tudo parasse de fazer sentido para fazer nirvana. É sentar-se em torno de si mesmo e saber, profundamente saber que este é o momento aprazado. Não li tudo, não conheci todas as pessoas que gostaria, não vivi todos os momentos que imaginei viver. O momento simplesmente chegou. O completo que sou se tornou insuportável e a necessidade de deixar de existir é a única saída. Não é se matar, é aceitar a morte como um fato natural, incessantemente invariável. Não tenho medo, não tenho ansiedade. É nirvana incompreensível. A morte só espera a entrega, mas nos negamos a nos prover esse instante único, imponderável. Por isso não é para todos, é somente para aquele que possui direito sobre si próprio. Eu o tenhoo, de tudo que li, conheci e vivi, me outorguei esse direito. Desde já, declaro, a morte me pertence e ela está para me arrebatar. Estou pronto para de agora em diante escrever postumamente. Ao desligar o computador, o som, ouço o silêncio e ainda escuto uma única música que ainda se repete, uma música tão serena quanto a morte nos performa ser, mas ao mesmo tempo destruidora, capaz de arrancar violentamente a mais sincera lágrima do último bruto insensível. Escuto um bater suave na minha porta. É a Morte, tenho certeza! E tenho uma visão: ela está cercada de nuvens negras, com olhos de estrelas a me julgarem nesse último momento. Abrir a porta é selar aquele contrato de entrega sereno com o meu destino. Morrer é saber que cumpri aquilo que me propus. É saber que por mais que não tenha lido, conhecido ou vivido tudo, li, conheci e vivi o suficiente para este momento, e que a entrega será sincera acima de qualquer coisa. Não me esperem, vou atender a porta. Os próximos relatos serão de depois do caixão. Não chorem, não praguejem, não se perturbem, só aceitem, é meu último e verdadeiro pedido. Não chorei, não praguejei ou me perturbei, simplesmente aceitei o último e verdadeiro pedido da vida: a morte.

Corvo

Muitas vezes não consigo distinguir o sonho da realidade. Fatos tão verossímeis são sonhados e os incríveis são vividos. Passei há alguns anos a conceber a vida como o improvável e a não distinção entre o sonho e a realidade é consequência voraz dessa atitude. Tudo o que conto, é sonho ou realidade? Quero deslocar essa pergunta: é realmente importante? Tudo é parte da minha vivência em improbabilidade insensata do ser. Acordei de um sonho vívido. Meus pés ainda formigavam, meus dedos da mão se moveram, meus olhos se abriram. Teto, armário, ruído do ventilador. Acho que era a realidade.

Virei meu rosto e meu quarto estava ali, inteiro, os livros como que dependurados nas prateleiras, alguns filósofos segurando outros por páginas riscadas ou com as orelhas dobradas, velhos hábitos de leitura. Alguns livros, a maioria presentes, intocados, as pessoas não sabem o que eu leio ou querem que eu não leia a morbidez da vida, ficam como mortos, defuntos desalmados, sonolentos, sem movimento. Minha escrivaninha entulhada de papeis, escritos pela metade, livros por ler, meu computador ainda ligado, algumas janelas abertas das aventuras noturnas pela virtualidade, e eu ainda fico na dúvida qual a pergunta mais importante: sonho ou realidade? Ou isto é realmente importante? Ficar de pé pela primeira vez no dia é o meu ato de agradecimento. Não preciso me ajoelhar ou mesmo fechar os olhos. Me levantar é a vitória da desnecessidade sobre impossibilidade de existir.

Tudo estava no lugar, não havia nenhuma salamandra ou sombras fantasmáticas andando pelo quarto. Acho que é a realidade. Apesar de que ontem eu vi duas larvas subindo pela minha janela, vai começar a temporada de salamandras novamente.

Café da manhã, hábito sagrado, sem ele o dia não começa. E sagradamente, ele sempre está sobre a mesa. Sair do meu quarto é invadir território inimigo, é deixar-se ser julgado por todos, pelos mínimos atos, é abandonar o refúgio e expor-se ao perigo. A mesa do café não estava posta, que horas seriam? Ao invés do usual pão integral, leite desnatado e manteiga light, havia uma gaiola. Ainda acho que era a realidade. Dentro dela um corvo negro me olhando. Antes da minha entrada claudicante pela sala, ele estava sereno, me olhou profundamente nos olhos por poucos segundos e depois começou a se debater como eu fosse seu algoz. Uma tesoura prateada estava ali ao lado da gaiola. E como se eu soubesse o que havia de ser feito, me aproximei, colocando meus dedos no cabo da tesoura enquanto minha outra mão abria o fecho da gaiola. O corvo cessou e me olhou mais uma vez. Desta vez mais profundamente, desta vez me inserenando. Testei o corte da tesoura no ar, o corvo saia da gaiola como a ir para seu fatídico destino. Minha mão segurou seu pescoço de uma forma delicada, não tentou nenhuma vez me bicar. Ainda era a realidade? A tesoura guiou-se sozinha até uma das asas do corvo que se abria como parte de um ritual que estava por se realizar. Cortei de uma só vez as penas. Este corvo não voaria mais. A outra asa se entregou, e a tesoura ainda derrubando as penas picadas iniciou o corte das outras penas. Tirei a mão do pescoço do corvo e ele bateu as duas asas a ensaiar um voo. Obviamente não conseguiu. Me olhou mais uma vez, com e sem serenidade. Uma lágrima verteu-se... Só não posso contar de que olhos, se dos meus ou dos do corvo.

Aquele pássaro não voaria mais, eu não saberia mais a diferença entre a realidade e o sonho. Um símbolo, ou a metade de um segredo me foi entregue naquele momento. Fica, agora, somente a busca insana pelo seu significado, pela sua outra metade. E eu estava ali, entregue ao olhar do corvo. Acho que era um sonho. Acho que era a realidade.

As peles do sonho

Gostava de sonhar com o realizável. Grande mentira, como muitas outras coisas eram mentiras. Sonhava, e muito, da mesma forma que mentia. Desejava ardentemente tudo o que havia de mais recôndito nele, porém certos sonhos são um tanto impossíveis, começou a sonhar somente com o realizável, como uma maneira de se conformar. Nova mentira, como tantas outras. Seu sonho mais secreto que no começo era o mais revelador sobre sua personalidade, foi soterrado por peles e peles de realidade, uma que é brutal, que o podava, que o tornava cada vez menor, mesmo sendo quem fosse... mas a realidade não é a mesma raiz de realizável? Era exatamente o que ele pensava, ou se fez pensar.

Ao bisturi, vamos vazar uma das peles desse sonho, casado há mais de cinco anos, sem muitas esperanças ou mesmo gozos, sentou em sua poltrona e abriu um dos livros em pilhas sobre o aparador que ali descansavam dos seus olhos vorazes. Os livros que lia ultimamente o convidavam para um inegável juízo sobre a invalidade da vida. Mas não, ele não poderia se matar, um sonho realizável era o de se separar, ou mesmo matar sua abastada e insossa esposa, uma realidade realizável. A faca já esteve em sua mão. Três vezes, minto também, muito mais vezes do que posso contar, como numa rápida valsa que os iniciantes tocam no piano a faca foi e voltou tantas vezes quanto foram necessárias, mas esta valsa ainda não havia terminado, o grande final que esperamos dela era o assassínio, mas ele não aconteceu, ficou como um gozo interrompido. 

Outra pele e muito sangue, ao se separar sonhara com uma vida um tanto mais tranqüila, somente ele e seus livros, sem as desnecessárias soirées no meio social em que teve que aprender a (con)viver. Abastado de champagna, queria pinga. Abastado de virtudes, queria os vícios. Por vezes, com alguma sorte encontrava um marido parecido consigo, marido desejável neste mundo de futilidades, e se atrevia a uma troca de sentidos absurdos até mesmo impensáveis naqueles ambientes. Aproximou-se dele sem muito o que falar, pegou um canapé e abriu a boca, “Você é marido de quem?” O nomes sonoros quase impronunciáveis da esposa impunham respeito, somente aquele necessário, ainda mais com a boca cheia de canapés. A mesma pergunta foi feita por ele, e o nome da esposa dele, também impronunciável, demonstrou que estavam na mesma situação, nem acima nem abaixo um do outro, gêmeos siameses separados na maternidade. Finalmente seus nomes próprios poderiam ser ditos, poderiam fazer algum sentido, mesmo que absurdo, nenhum estava abaixo um do outro, ou mesmo do lado, estavam sobre-escritos, Jean. Riram da coincidência e se fartaram de canapés. Discutiram filosofia e mofavam do estado em que suas vidas se encontravam. Gostavam do tempo que tinham para si, mas odiavam a falta de si-mesmidade que almejavam. Jean olhou profundamente nos olhos de Jean. Jean sorriu e Jean corou. Selaram ali mesmo na absurdidade, na miséria de si mesmos, um acordo, um acordo impensável para aquele ambiente. “No jardim em dez minutos”, essa sentença não precisou ser enunciada, estava escrita nos olhos e nas maçãs dos rostos corados. Correram até suas esposas, falsamente risonhas ao tentarem lembrar-se das amigas menos importantes e de seus respectivos e desimportantes maridos. Eles socializaram alguns sorrisos, como a dizer que estavam acostumados àquela (sobre)vivência. E se despediram. “Vou até o jardim”, esta sentença, sim, foi pronunciada em alto e bom som, suas esposas não sabiam ler sorrisos ou bochechas coradas... Eis que aqui temos o órgão que estávamos procurando, ele ainda pulsa, mas está fraco. Infelizmente, podemos fechar e costurar os pontos.

Sentado em sua poltrona, matou mais um livro. Matou mais um sonho. Não permitiu se matar, por mais uma vez. Pelo simples prazer do caos, um pequeno gosto(so), empurrou a pilha de livros do aparador. Viu todos caírem lentamente, abrirem-se, estragarem-se, as páginas de uma raridade da década de 40 até se soltaram soltando um pó guardado ali, liberando o fantasma pestilento dos seus sentidos. Quantos sonhos não realizados aquelas páginas já não alimentaram? Quantos maridos insonháveis ele não viu passar os olhos sobre suas páginas? Evidência sobre evidência, tudo era o mesmo pó, fantasmático sinal da mesmice(dade). Guardados ali, sob a custa de muitas noites de infelicidade.

Levantou-se da cadeira e permitiu-se a coragem de realizar esse sonho de liberdade. A separação seria a sua possibilidade de ser quem sempre almejou, e Jean, o outro, poderia estar ali fora, à porta, na possibilidade de dizer que fez o mesmo. Porém, segundos depois se sentou, catou os livros do chão antes que ela chegasse e (o)brigasse com ele pela bagunça na impecável biblioteca cheia de raridades-fantasmáticas. Por que não se permitia morrer de verdade? Entregar-se a toda aquela invivibilidade não era o mesmo que a morte? Não. Seu sonho mais secreto, aquele mais revelador, órgão pulsante mas frágil, não poderia ser realizado. A vontade de ser absolutamente nada, não era para ele. Sendo quem fosse ele está ali, a beira do realizável, dentro da realidade. Sua nulidade deveria ser plena para que este sonho se realizasse, mas nunca seria. Escrevera livros demasiadamente. Era suficientemente importante para fazer falta aos poucos acadêmicos que o liam com uma determinada paixão, fingida de respeito. Sua niilidade seria quase nula, e isso não era seu sonho. Não poderia ser nada sendo quem era. Então se oprimia com sua própria (sobre)vivência. Era uma maneira de se punir por ser quem era. Por tentar fazer o suficiente para marcar a própria realidade com a sua presença espectral. Burrice. Isso sim, verdade, sem um pingo de mentira. Sonhava com o irrealizável: anular sua própria história sem ser percebido. Jean, ele mesmo e o outro poderiam estar ali fora no jardim, vivendo sonhos impossíveis sem nenhuma pele como fantasmas, mas ele, ele mesmo, não, estava lá dentro, sendo quem era, sonhando com o impossível.