Soprador de Espectros

Soprar espectros não é um hábito comum. Somente aqueles que atingiram uma pequena visão sobre a miséria humana podem fazer com certa precisão. Não há rituais, nem livros sobre. É algo que se aprende com a sabedoria de lamber cadáveres, num ângulo não imaginado, numa postura antirrespeitosa com a memória do defunto. Que defunto tem memória? A não ser seu próprio corpo jogado ao relento? E ele só lambia defuntos que estavam ali, sem esperança. Entretanto, não é difícil de achá-los.

Para ele, caminhar pelo parque é como caminhar num cemitério depois de um dilúvio, os corpos ficam jogados pelo caminho como flores desaguadas, pernas para fora da terra, dedos apontando um desejo para o céu, um céu tenebroso cheio de nuvens negras sem olhos a piscarem a mínima esperança. Ele olhou cada um dos corpos com ardor, sua mente fervilhava sua única possibilidade de existência, a de soprador de espectros. Alguns corpos já tinham seus donos, imitadores que buscavam o mesmo insano prazer, porém aquele prazer só pertencia a ele. Lamber cadáveres é uma ciência rara, revelada a poucos egípcios. Um mistério ainda não decifrado pelos homens cadavéricos. Andou e olhou mais um pouco, e com o gosto do sangue coagulado em sua boca previu de longe aquele que seria a sua vítima do dia.

A aproximação não tinha nenhuma afobação. Não precisava. Aquele cadáver não poderia ser possuído por mais ninguém além dele, os seus destinos estavam já ligados pelo profundo desejo, misteriosamente, todos sabiam que não poderiam ter aquele mais precioso resto humano exposto no ato do descuido.

O parque havia se tornado uma luxuriosa tentação, mortos sendo insabiamente absorvidos, mas a grande performance estava por acontecer, todos sabiam, e esperavam a imponência do ato. Seus passos eram lentos, como parte de um leve caminhar, que só tornava o desejo mais e mais ardoroso. Todos já estavam seduzidos por aqueles passos sinceros em direção do corpo mais cobiçados de todos. Toda aquela inveja alimentava mais e mais o ato. Transformando o único no inadmissível. Há poucos passos do objetivo, já não havia mais barulho nenhum ao redor, era o respeito pela magnanimidade do ocorrido.

Seus lábios não salivavam, estavam secos pela sede do espectro que ali jazia. Seus lábios carnudos lentamente se abriram e todos os assistentes também abriam seus próprios lábios a compartilhar de uma forma improvável somente o desejo de possuir. O cadáver moribundo deitado na grama nem suspeitou de seu implacável destino, não sabia o que iria acontecer, não previa seu futuro, como não possuía memória.

Suas mãos, de dedos atrofiados, quase que abraçaram o corpo já gélido, já alvo, já insereno. Erguendo lentamente o corpo, ele nem precisou se abaixar, seus braços longilíneos faziam o serviço de aproximar o umbigo do cadáver dos seus lábios. Sua língua pela primeira vez roçou seus lábios, como a preparar a arma para o bote. O silêncio local tornou-se mais inesperado com todos segurando suas respirações pelo gozo final do ato.

O beijo inapropriado no umbigo, leve e de olhar vazio, possuiu o corpo de algo menos provável que a vida, mais insaciável que a morte. Há fantasmas e há espectros. E o espectro é único, cheio de nada e presente em nossa desvairada visão. Soprar espectros era um ato invasável.

Muitos nem conseguiam olhar para o beijo completo, sentiam-se tão menores, tão desejosos de serem a próxima sua vítima, como se ele fosse um libertador, como se fosse um salvador. Era e não era, tornar-se espectro é entrar em um estado único, diferente do nirvana, da ascensão, da compreensão da divindade, da verdade, é estar no entre-lugar na inecessidade. Onde não há misericórdia, onde não há paixão, onde só há espectralidade.

O beijo não dura muito. É um ato feito com desleixo. Ele sabia como fazê-lo, e não via ali nenhuma admiração. Somente saciava sua fome, e entregava de presente ao mundo mais um espectro. Terminou o beijo e o tempo voltou a correr. Seus olhos ainda vazios, ao olhar ao redor não viu nada além do parque, ninguém ali o olhava. A nudez do seu ato era solitária como ele.

Algo ali se transformou profundamente dentro do seu ser. Sua garganta se contorcia como se algo quisesse sair, sua barriga flácida se agitava como se alguém ali estivesse se debatendo em desespero inútil. Seus olhos se avermelharam como se seus órgãos internos tivessem se rompido. Sua boca se abre como que automaticamente e de lá, algo presente-ausente saiu. Rompendo a própria lógica da existência. Mais um espectro, a própria impropriedade da vida, existia ao não existir. E ele? Ele continuava seu caminhar, leve e inviável até o próximo cadáver, que poderia estar ali mesmo, ou distante, fator que não faria diferença alguma, nada poderia deter seu caminhar, sua existência também era a própria espectralidade.



Temperança

a Fabiana


O emaranhado de sentidos que eu represento é desconcertante. Muitas vezes me dá dor de cabeça em ser como sou, pensar como penso, sentir o que sinto, imaginar o que imagino. Muitas vezes deito em minha cama, a janela aberta permitindo que a ilusão solar entre e faça dos meus olhos embaçados. Deitado em minha cama com uma dor insuportável na parte detrás da minha cabeça, fecho os olhos para parar de ver e ilusão e começar a imaginá-la. O vento momentaneamente estagnou, o mormaço definitavamente subiu e uma gota de suor desceu riscando minha testa, escorrendo pelo meu nariz até dar a volta pela minha boca e saltar pelo meu queixo.
Ao abrir os olhos, ela estava ali, flutuando em minha frente, vestido vermelho, uma flor no cabelo, os cabelos lisos e negros completavam o conjunto que não me impressiou. Dos seios fartos retirou um tarot ao qual misturou as cartas cuidadosamente, mesmo sem olhar para suas mãos, visto que seus olhos fitavam os meus. Tento lembrar o que se passou em minha mente naquele momento, mas a certeza é que nada se passou, tudo parecia tão natural que não fiquei chocado ou mesmo ansioso. Era somente uma cigana flutuando em minha frente, embaralhando seu tarot. Nada de mais, nada com que eu não pudesse lidar.
A cigana depois de um longo embaralhar e de um longo olhar me ofereceu o baralho em leque, seus olhos requeriam que eu retirasse uma carta, sem palavras. Entrei no jogo, apesar de não acreditar em nenhum rito advinhatório. Lembro do desenho da carta, uma cigana com dois jarros um transmitindo água para o outro. Lembro também do número, XIV. A cigana tocou minha testa e se foi. A dor momentaneamente passou, visto que é incurável.
Por muito tempo esqueci o fato, até ter a primeira oportunidade de ver um baralho de tarot. Foi um leão que o trouxe até mim. Primeiro entrou o leão pela minha sala, sem cerimônia, a anunciar a presença de sua protegida. A campanhia tocou e ela entrou com o baralho em mãos. Eu não podia tocá-lo, estava limpo. Só pude apreciar cada uma das cartas a distância. Até chegar ao número XIV, e me extasiar com o fato de o desenho bater exatamente com o número, mesmo nunca vendo um tarot antes. Como saberia qual o desenho da carta? Como eu saberia quantas cartas tem um tarot? O fato é que a carta se chama Temperança. Pedi ajuda para entender a carta, alguns fatos se conectaram pela força do discurso. Não acreditei no começo. Mas o tempo age morto. E mortalmente a carta e seu conselho se provou necessário. Porém, eu sou teimoso, fiz o reverso para provar o verso. Muitos versos ainda estão por compor essas breves narrativas, somente não sei se esse emaranhado de sentidos que sou, vão se enovelar cuidadosamente e tecer um filigrama precioso.