Cair e voar

A Raffael

Ando viajando pelas nuvens. Subo pela sacada do meu apartamento, no parapeito, mas nunca caio. Quando coloco meu pé no ar, subo de degrau em degrau, são invisíveis. As nuvens já não me olham com aquele vigoroso e velho olhar de estrelas do passado. Elas olham e sorriem, abrem sorrisos misteriosos e flutuantes, entro no sorriso como se penetrasse o mistério dos próprios signos que as nuvens formam, formas únicas, indivisíveis, indeléveis.


Nessas viagens quase suicidas (porque não me permitem cair?) um dia, encontrei o anjo. Ele estava ali, parado, conversando com uma estrela, ouvi seu tratado secreto sobre ser a si mesmo, ele era a si e o outro era o outro, tão sereno, tão calmo, um sotaque enochiano que não conseguimos revelar os sentidos. Onde estão os sentidos? Sentimos todos eles riscados de nossas bocas, línguas e peles. Eu parei, apreciei a conversa e o anjo. Sua postura, seus lábios movendo em enochiano, que para mim não fazia sentido somente no começo, mas meus ouvidos se acostumaram, se prepararam para a língua dos anjos, signos simples mas tão plenos de significados que soam como chuva pelas nuvens. Sabia que alguma vez em minha vida, havia tomado banho de chuva de símbolos angelicais.

A estrela pelas nuvens brilhou seus olhos para mim. O anjo virou seu rosto e me viu. Logo me escondi atrás de uma nuvem. Ela sorriu e me disse que ali era como se eu estivesse nu, e não adiantaria ali me esconder, pois seria mais visível do que queria, envolto nela eu seria transparente, como ela, como tudo. Ele disfarçou que me via, era como se piscasse, fingindo que fingia não me ver. E fingiu. Fingiu tão bem que continuei minha jornada, mas com a piscadela do anjo em minha mente, e recordando o banho enochiano que havia tomado (seria um sinal de que eu encontraria aquele anjo com suas palavras sobre o eu e tu? Não poderia ser, mas foi.)

Segui em frente, mesmo assim. Queria atingir aquela nuvem que mostra a verdade, que derrama raios em minha cidade iluminada por instantes de volúpia entre as nuvens. Gostava dela porque a cada relâmpago eu aparecia de verdade, no reflexo de mim mesmo, em qualquer lugar. Era ali que me sentia inteiro. E logo ali estava ela, negra, cheia de si e do magnetismo que a fazia viva e única, especial entre as outras nuvens que transitavam quando sai pelo parapeito do meu apartamento. Aproximei-me vagarosamente, como ela sempre me pediu, “não me assuste”. Ela não tinha olhos como as outras, por isso não sabia se já tinha percebido minha presença ou não. Aprendemos juntos a vencer essa dificuldade, pois ela sempre falava o meu nome num tom sábio. Era com se encontrasse um amigo que sempre me questionava o porquê de eu ter voltado ali. Sempre busquei o mesmo conselho, a mesma palavra, a mesma voz. Não porquê não tinha entendido, mas porquê gostava de ouvi-la falar. Porém nesse dia a surpreendi, falei de anjos, não a pedir, mas a descrever, da mesma maneira que faço agora. Ela sorriu, e seu sorriso era medonho, aprendi a não temê-la, era a nuvem mais grotesca, mas a que mais me atraia. Apesar do sorriso misterioso, prossegui falando e falando, e ela abriu um sorriso maior ainda. E eu continuava a não entendê-la, até que finalmente gargalhou. E tudo brilhou pela primeira vez naquela noite e percebi que o anjo estava ali, a me observar a falar dele e dos banhos angelicais de chuva. E pela primeira vez não senti o etéreo chão sob meus pés e caí. Sabia que iria morrer, mas com serenidade me entreguei na queda.

Caí, caí e caí lentamente, minha vida não passou pelos meus olhos, mas sabia que ia morrer. Senti o chão verdadeiro se aproximando, não fechei os olhos pois queria ver a morte de olhos bem abertos. Ela não veio, quem estava ali era ele. O anjo a me segurar, seus pés firmes no chão tocaram. E eu fechei os olhos, a vergonha de ser visto por ele me cair e fez também minhas pálpebras pesarem. E ele falou comigo. Falou e falou, metade de símbolos que só eu possuo a chave para revelá-los. Quando terminou, deitou sua sentença final sobre mim. Sabia que tinha terminado. E eu somente pedi: podemos voar? E voamos.


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