Invazável


Olhando para céu em busca da lua, não consigo enxergá-la. A chuva é Senhora da Vida neste momento, olho e fecho os olhos pela força da água que caia diretamente em minhas pupilas. Ela faz as plantas se curvarem, a terra se desfazer e nos sentimos todos menores, frágeis.
Só há um lugar não tocado por ela, aquele lugar em que me sentei, lá meu corpo se inscreve, é um lugar todo meu, não é como o coração, até lá ela faz o sangue ficar ralo, por tanta água que ali derramou. Lá, embaixo de mim, ele dança, como se ali fosse um refúgio seguro. Seco, por vezes até árido, muitas vezes quente pelo calor do meu corpo febril. Ele dança aquela dança contemporânea cheia de espontaneidade, vivacidade voraz dos movimentos angulosos, não há suavidade ali, só beija-flor, plainando e certeiro.
Meus cabelos depois de tanta água até parecem estar molhados, senti a água gelada da chuva noturna atingir meu couro cabeludo, escorrendo envolta da minha cabeça, descendo pelo meu pescoço, meu peito, barriga e pernas, mas, ali, onde eu sentei antes da chuva começar em busca da lua, está intacto.
A dança ganha mais ritmo, mais luz, apesar da escuridão total do meu sentar. A luz é própria, estrela, como o olho de uma nuvem. As imagens não mais se desfazem, performam atividade, dançam ao ritmo de raios cadentes. Os estouros daquele raio mais forte, ecoa, é uma guerra positivo contra negativo, de nuvens que se enegreceram com o tempo.
A senhora da vida não cessa, continua se avolumando em raiva, quer atingir até o fundo intacto do meu âmago, quer borrar a dança voluptuosa. Raios mais fortes e mais constantes. Ela não percebe que isso é música aos meus ouvidos? Que é através de todos esses raios que ali me vejo refletido? Ela não me ouviu com o silêncio necessário, trovejava enquanto me elaborava. Melhor assim, ganho um inimigo inculto que não consegue me vazar, que não consegue me cindir por completo. Os olhos das nuvens perdem o brilho, se fecham e choram a vida. A dança já está próxima do fim. Tem outro ato? Quanto tempo dura esse espetáculo? Não faz diferença seu fim próximo ou muito distante, ainda ecoam a secura árida dele ao dançar aquela música macabra de ecos, rossoa, ritombada ritumbante.
A chuva cessa aos poucos, os pingos rareiam, os raios se desfalecem na terra ou nos para-raios. E eu ali permaneci sentado por horas, horas sem fim, na espera. A paciência se tornou uma virtude invencível.
O espetáculo ainda não terminou, está a espera da próxima tempestade. O próximo ato é a Senhora da Morte.

Cair e voar

A Raffael

Ando viajando pelas nuvens. Subo pela sacada do meu apartamento, no parapeito, mas nunca caio. Quando coloco meu pé no ar, subo de degrau em degrau, são invisíveis. As nuvens já não me olham com aquele vigoroso e velho olhar de estrelas do passado. Elas olham e sorriem, abrem sorrisos misteriosos e flutuantes, entro no sorriso como se penetrasse o mistério dos próprios signos que as nuvens formam, formas únicas, indivisíveis, indeléveis.


Nessas viagens quase suicidas (porque não me permitem cair?) um dia, encontrei o anjo. Ele estava ali, parado, conversando com uma estrela, ouvi seu tratado secreto sobre ser a si mesmo, ele era a si e o outro era o outro, tão sereno, tão calmo, um sotaque enochiano que não conseguimos revelar os sentidos. Onde estão os sentidos? Sentimos todos eles riscados de nossas bocas, línguas e peles. Eu parei, apreciei a conversa e o anjo. Sua postura, seus lábios movendo em enochiano, que para mim não fazia sentido somente no começo, mas meus ouvidos se acostumaram, se prepararam para a língua dos anjos, signos simples mas tão plenos de significados que soam como chuva pelas nuvens. Sabia que alguma vez em minha vida, havia tomado banho de chuva de símbolos angelicais.

A estrela pelas nuvens brilhou seus olhos para mim. O anjo virou seu rosto e me viu. Logo me escondi atrás de uma nuvem. Ela sorriu e me disse que ali era como se eu estivesse nu, e não adiantaria ali me esconder, pois seria mais visível do que queria, envolto nela eu seria transparente, como ela, como tudo. Ele disfarçou que me via, era como se piscasse, fingindo que fingia não me ver. E fingiu. Fingiu tão bem que continuei minha jornada, mas com a piscadela do anjo em minha mente, e recordando o banho enochiano que havia tomado (seria um sinal de que eu encontraria aquele anjo com suas palavras sobre o eu e tu? Não poderia ser, mas foi.)

Segui em frente, mesmo assim. Queria atingir aquela nuvem que mostra a verdade, que derrama raios em minha cidade iluminada por instantes de volúpia entre as nuvens. Gostava dela porque a cada relâmpago eu aparecia de verdade, no reflexo de mim mesmo, em qualquer lugar. Era ali que me sentia inteiro. E logo ali estava ela, negra, cheia de si e do magnetismo que a fazia viva e única, especial entre as outras nuvens que transitavam quando sai pelo parapeito do meu apartamento. Aproximei-me vagarosamente, como ela sempre me pediu, “não me assuste”. Ela não tinha olhos como as outras, por isso não sabia se já tinha percebido minha presença ou não. Aprendemos juntos a vencer essa dificuldade, pois ela sempre falava o meu nome num tom sábio. Era com se encontrasse um amigo que sempre me questionava o porquê de eu ter voltado ali. Sempre busquei o mesmo conselho, a mesma palavra, a mesma voz. Não porquê não tinha entendido, mas porquê gostava de ouvi-la falar. Porém nesse dia a surpreendi, falei de anjos, não a pedir, mas a descrever, da mesma maneira que faço agora. Ela sorriu, e seu sorriso era medonho, aprendi a não temê-la, era a nuvem mais grotesca, mas a que mais me atraia. Apesar do sorriso misterioso, prossegui falando e falando, e ela abriu um sorriso maior ainda. E eu continuava a não entendê-la, até que finalmente gargalhou. E tudo brilhou pela primeira vez naquela noite e percebi que o anjo estava ali, a me observar a falar dele e dos banhos angelicais de chuva. E pela primeira vez não senti o etéreo chão sob meus pés e caí. Sabia que iria morrer, mas com serenidade me entreguei na queda.

Caí, caí e caí lentamente, minha vida não passou pelos meus olhos, mas sabia que ia morrer. Senti o chão verdadeiro se aproximando, não fechei os olhos pois queria ver a morte de olhos bem abertos. Ela não veio, quem estava ali era ele. O anjo a me segurar, seus pés firmes no chão tocaram. E eu fechei os olhos, a vergonha de ser visto por ele me cair e fez também minhas pálpebras pesarem. E ele falou comigo. Falou e falou, metade de símbolos que só eu possuo a chave para revelá-los. Quando terminou, deitou sua sentença final sobre mim. Sabia que tinha terminado. E eu somente pedi: podemos voar? E voamos.