Dolo e dano

As olheiras dão um ar tão macabro e a íris está tão dilatada que não se sabe mais o que é olho e o que é profundidade, a pele branca enganadoramente tétrica, morte aparente, os dedos roxo-preto-prateados por falta de circulação sanguínea, tudo é sinceramente preto e branco, escala de cinza em alta qualidade. Tudo isso dentro de um buraco, que tem muitos nomes, muitos deles interditos, e de tão diversos que não serão nominados muito menos enumerados. Dói. Estou tão arredio que o simples contemplar do buraco em que me acho é ato insólito, é inválido, insano, por vezes. Mas estou exposto, vidro por toda parte, e uma pequena plaquinha no canto direito inferior: “Vontade eterna de si mesmo” – ser humano em estado avançado de putrefação, terra e ar. Me olhe, me sinta, mas não tenha medo, tudo é uma pequena e leve narrativa da minha própria e imprópria autodestruição. Estou mentindo o tempo todo, quero atenção serena e sincera. É só isso! Quero ser ouvido! Já fui e sou muito só ouvido... Quero ser sol e soul. Convergência em torno de mim, exposto, dentro do buraco. Obra indecidível de mim mesmo, para me ver é preciso se arriscar, subir pelo vidro e olhar sinceramente dentro do buraco e desejar profundamente não ser morto pelo veneno prateado que escorre das pontas luminosas dos meus dedos. Tenho tanta miseris de mim mesmo que até me abandonei, deixei lá, aquilo que é, simples e só, e agora me acho aqui do lado de fora do vidro. Incompleto, rasgado em dobras, partido atravessado. Nunca teria audácia de subir o vidro e dar uma sincera visada em minha vista. O olhar de mim mesmo seria mortal vivaz. Interdito tempo espaço, em espirais sumo distorcidas. Porém, o momento final chegou, quebro o vidro, expulso todos do meu derredor. O circo acabou, a lona está rasgada e a aberração já se autoconsumiu em nada. Só resta dolo e dano, tudo/nada mais.

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