A impressionante visão do outro.

A Renato

Deparo-me com ele invisível diante de mim. Sinto sua presença, meus olhos recalcam a própria visão. Sinto seu cheiro, sinto seu gosto, mas não o vejo. Tendências cegas numa virtude total de invisibilidade... Ah quero tê-lo, quero tocá-lo, mas não o vejo. Onde está seu cheiro? Por que não forma uma imagem dele mesmo? Seu gosto-cheiro saboroso pela manhã bocejando é a própria insorte da vida efêmera que nos propomos! Quero vê-lo! Por que não posso?
Ele fala! A palavra forma imagem viva de sua carne, a escrita do corpo serena sobre a minha pele. Sinto seu toque pela primeira vez como em todas as vezes. Toca-me por que nunca fui tocado. Olho o som de tua voz e ouço as virtudes de sua boca.
Ele cala! Sua carne-palavra se desfaz, mas sua presença-cheiro-sabor ainda é marcante em mim. O toque é presente sincero e feliz, por mais que isso possa significar. Sim, ele é um significado cheiro-sabor. Sua presença é ausência de corpo e muito de palavras, é o corpo vivo da palavra. Que sua invisibilidade dure por toda a eternidade e se faça presente num simples abrir de boca, num gesto sincero de exalar de si mesmo os humores do corpo, e fazer junções cerebrais palativas em mim. Como você pode estar presente-ausente por tantos anos? Só uma possível resposta: a distância... Mas o que significa ela? Nada, como o acaso. Roda-se a roda-gigante mais uma vez. Vamos ver onde ela vai parar...

Dolo e dano

As olheiras dão um ar tão macabro e a íris está tão dilatada que não se sabe mais o que é olho e o que é profundidade, a pele branca enganadoramente tétrica, morte aparente, os dedos roxo-preto-prateados por falta de circulação sanguínea, tudo é sinceramente preto e branco, escala de cinza em alta qualidade. Tudo isso dentro de um buraco, que tem muitos nomes, muitos deles interditos, e de tão diversos que não serão nominados muito menos enumerados. Dói. Estou tão arredio que o simples contemplar do buraco em que me acho é ato insólito, é inválido, insano, por vezes. Mas estou exposto, vidro por toda parte, e uma pequena plaquinha no canto direito inferior: “Vontade eterna de si mesmo” – ser humano em estado avançado de putrefação, terra e ar. Me olhe, me sinta, mas não tenha medo, tudo é uma pequena e leve narrativa da minha própria e imprópria autodestruição. Estou mentindo o tempo todo, quero atenção serena e sincera. É só isso! Quero ser ouvido! Já fui e sou muito só ouvido... Quero ser sol e soul. Convergência em torno de mim, exposto, dentro do buraco. Obra indecidível de mim mesmo, para me ver é preciso se arriscar, subir pelo vidro e olhar sinceramente dentro do buraco e desejar profundamente não ser morto pelo veneno prateado que escorre das pontas luminosas dos meus dedos. Tenho tanta miseris de mim mesmo que até me abandonei, deixei lá, aquilo que é, simples e só, e agora me acho aqui do lado de fora do vidro. Incompleto, rasgado em dobras, partido atravessado. Nunca teria audácia de subir o vidro e dar uma sincera visada em minha vista. O olhar de mim mesmo seria mortal vivaz. Interdito tempo espaço, em espirais sumo distorcidas. Porém, o momento final chegou, quebro o vidro, expulso todos do meu derredor. O circo acabou, a lona está rasgada e a aberração já se autoconsumiu em nada. Só resta dolo e dano, tudo/nada mais.

Permita-me uma morte, por favor!

Ele ainda não voltou. Meu apartamento continua vazio e um som ecoa dentro dele ribombando serenações. Está quinze minutos atrasado! O atraso nunca me incomodou, só que tem me dado ideias recalcitrantes nesses últimos dias. Como ele se atreve a fazer isso comigo? Quando eu penso em me atrasar, em viver mais um pouco a liberdade condicional que me foi (auto)concedida, seja por mais cinco míseros minutos, ele fica louco, insandesse em ligações telefônicas até a desestruturação passiva de mim mesmo pela culpa de ser um pouco feliz fora do antro familiar que se constituiu pelo desejo insano da segurança e solidez. Ele quer ouvir a minha culpa pedindo desculpas, nesse jogo incessante de prefixos e sufixos. Começo a imaginar: será que sofreu um acidente de carro? Logo meu celular vai tocar, é minha esperança, e será um policial: "Estou ligando pra falar que ele morreu, precisamos que você venha reconhecer o corpo!" Eu pensarei que o farei urgentemente, mas fingirei como sempre fingi: o triste, o impossível sensível. E irei felizcontido, seria minha liberdade total, contenção de felicidade para explodir no futuro livre do dom(ínio). Mato morrendo para renascer no círculo mais feliz de mim mesmo, vidas dentro de vidas, vidas em dobras e desdobras, sendo um novo ser desdobrado me redobrando no futuro. Tudo seria novo! (Olha minha imaginação trabalhando) Eu seria diferente, poderia usar a roupa que sempre quis, os óculos que sempre sonhei, fazer com que minha mão se movimente daquela maneira única que sempre quis que ela se movimentasse e sempre recalcou, no ato inseguro de segurar uma mão na outra. Viajaria, conheceria os recantos mais ilusórios da própria terra, entraria em vulcões (ato até o momento poeticamente irrealizável), no fundo dos oceanos e voaria nos limbos serenos gelados e sentiria a verdade, próxima e impossível, ao mesmo tempo. Tudo isso por um derrapar inconteste das rodas. A liberdade seria me concedida pelo acaso, mesmo não acreditando nele, mas por um pequeno gesto de confiança, sentiria um pouco de culpa, mas só um pouco, só no começo, porque teria (me) matado pelo pensamento, mas como eu sou esquecido essa dor logo seria cicatriz e assim seria somente mais um borrão na minha memória. Sim eu seria feliz! E se não fosse, inventaria uma felicidade-novo-conceito, aquela que só é para mim a fim de me sentir naquela zona de conforto únicoabsurdo. Já faz trinta minutos de atraso, meu sonho já é quase realidade, só mais um pouco desejo: as cores das paredes mudam, agora são brancas, os móveis se desfazem, são todos de madeira com almofadas pretas peludas, e só resta um risco vermelho nas paredes e  no chão um único tapete felpudo e uma pequena escultura rustica ao canto, seria assim, até que a maçaneta moveu, o trinco da porta se agitou pela presença da chave, das chaves porque ele nunca soube de primeira qual era a chave do apartamento, penetrando seu segredo, e revelando/abrindo a porta/passagem. Era ele. Abro o sorriso indecidível e digo: "você demorou!" e penso: quase fui feliz! Preciso me matar mais um pouco.