Ritual

amanheço um ritual
e um ato de repente é outro
rito ritual
da mesma forma que todo sentido
tem palavra um ritual o sinal
como ritual
bebo todo sinal
esclareço penso conjecturo
ritual
o verbo sem forma
também é ritual
moldado pelo sentido
o poeta vira produto final
de um ritual macabro verbal

Ousadia

É pura ousadia
um dia ser poeta-herói
soberano das palavras
ditas e das não-ditas
ou mesmo das atribuídas
a uma voz múltipla
cheia de vazia razão

O ofício já foi vão
Escurrado das repúblicas
queimado em praças públicas
E as vezes repetido aos suspiros

Hoje com a mais-valia
não se sabe ao certo
onde as palavras tem ou não
valor certo e imperioso

Mas é assim
ser poeta
ser herói
ser senhor
e ser pedinte
de letras persuasivas
cheias de vazia razão

Eu estou louco?

Você já abriu os olhos com a certeza de que estava louco?
As pessoas vestidas de branco arrombam a porta de seu quarto. Entram aos montes. Ocupam todos os espaços vazios. Você está paralisado na cama e os vêem mexerem nas suas coisas...
- Onde estão suas meias?
Na gaveta do meio. Ou:
- Documentos?... Ops! Esqueci você não vai mais precisar deles.
Quem é você sem eles? Quem é você com eles? Uma picada. Tudo começa a ficar embaçado e você não sente as pontas dos dedos dos pés.
Da cama para a maca. Tudo vai perdendo as cores lentamente. Um, dois e três. Movimento. Sirene. Velocidade. Tensão.
- Cuidado com aquele carro!
- Mais rápido aí, o paciente está perdendo o sentido.
Parada. Luzes. Corredor.
- É urgente, doutor. Ele precisa da injeção.
Sala. Luz. Seringa. Injeção? Agulhada.

mergulhar no céu sempre foi o sonho da sua vida olhar e planar com as gaivotas lado a lado e brincar nadando de costas ah agora você entende o nado borboleta fora da água ele não leva a lugar algum mas é uma pena que o céu não tenha cobertura quando vem uma tempestade nem seja aquecido no inverno uma coisa é certa o céu ficando escuro e trovejando dá medo isso é verdade torrencial tempestade de medo cai do céu e enche a vida de gélida necessidade e lá vem a enxurrada levando tudo você gaivotas cores e até os medos

Suspiro. Piscadela.
- Bem-vindo de volta.- Colete branco, cama branca, coberto branco, janelas brancas, teto branco, paredes brancas, copo branco, jarras brancas, tudo a sua volta é branco - Este é seu novo quarto. Ele é um pouco branco, eu sei, mas como você vai ficar por aqui um bom tempo, você pode pegar aquele giz de cera e usar a sua criatividade. – Risada indescritivelmente branca...
Tenta levantar, mas seus braços e pernas estão amarrados na cama.
Entra pela porta a enfermeira rolando de tão gorda e te alimenta com todo o resto batido no liquidificador. Você regurgita e ganha um belo e cinematográfico safanão, é claro em câmera lenta (será que dói mais?):
- Menino feio!
O pior é que você está bem coberto dos pés até a esquina do pescoço. As cortinas brancas estão sendo lavadas e o ar condicionado está em reparo. O Sol perfeito reinante de uma tarde quentinha faz com que a sala inteira derreta. O teto pinga e escorre pelo cobertor.
Você grita todo molhado de suor. E entram dois musculosos e sem-camisa enfermeiros.
- A injeção, doutor! Ele está delirando!
Não adianta gritar um não de dez segundos. Doutor. Seringa e agulhada.

dançar com os quadros de Matisse é poder tocar o desconhecido com a ponta dos dedos ciranda para cá ciranda para lá cair de tanto girar é o mais gostoso a tinta viscosa suaviza a gravidade mas ao se usar muita tinta é possível se afogar e sorver a própria morte falando nela acho que é ela que se aproxima

Seu braço parece uma peneira. Doutor e agulhada não têm tempo para tratar. É melhor te deixar assim e não ter pressa, você vai ficar por aí muito tempo mesmo.
Você pode sofrer o que for, pode delirar o que quiser. Ser louco nesse mundo é uma solução.
Mas uma coisa é fatal, sempre é. A certeza. Com injeção ou não ela chega.
Bate na porta, porque é educada, entra, senta. Abre o livro negro e diz, com uma voz esganiçada:
- Orgulho, vaidade, sensualidade e egoísmo! Ah! E é claro a loucura! Você vêm comigo, não há salvação!
E assim vai. Cobrem seu rosto, dão baixa na ficha no mês seguinte, para fazer uma festa com o dinheiro desse mês.
Solução ou não você está livre. Livre dos homens, livre dos anjos. No inferno você é ainda você, sem documento e fazendo o que gosta.

Pena que o louco aqui é você e não eu. E eu ainda estou dormindo, doido para acordar.

Réptil ou um sonho para se pisar...

Sonhar acordado não faz meu estilo. Sou pé-no-chão, presencio todos os fatos com uma desconfiança inimaginável, paradoxalmente real.“Você não deve pensar assim...” Era uma voz quase inaudível e aguda, vinda de algum lugar perto da grama. “A vida tem muitas nuanças imperceptíveis.” Foi exatamente essas inocentes palavras que um lagarto esverdeado utilizou ao aparecer na relva. Um lagarto falando não foi o mais improvável, mas sim foi pensar o que um lagarto saberia sobre a vida, improbidades da existência humana. Somente no final de tudo isso que fui refletir em porque dei bola para tamanha ilusão, estava perdendo meu tempo. “O tempo não mostra nada além da experiência.” Era mais uma pérola da sabedoria falida e cansada que saia da boca do réptil. “E sabedoria é inteligência refletida.” Essa foi ótima, completou eficazmente o raciocínio e seu oposto. Até sentei-me, assim poderia despertar desse sonho macabro de auto-ajuda. “E você é um tipo de sábio dos lagartos?” Resolvi brincar com o resto de minha ilusão... “Claro. Observar a vida é o que mais enche a mente de sabedoria...” Mente? “Claro! Se não tivesse uma, poderia estar te ensinando?” Lagarto abusado, ilusão impertinente, queria brincar com o meu passado, nem tinha penas negras ou um bico para dizer nevermore. Certamente Poe não gostaria dessa brincadeira. “Sou diferente, reflito e não digo o que quer ouvir, e está muito espantado, sei disso!” pela cretinice, é óbvio, de um lagarto pensar que conseguiu analisar O corvo “E por isso nega minha presença e minha sabedoria-inteligência. Curva...” Sinto muito, mas ninguém é maior do que eu, pobre instinto natural. “Siga-me que te mostrarei o mundo.” E foi rastejando. Hesitei por milésimos de segundo, mas o segui porque tinha uma missão a cumprir. E assim, me levou ao abismo. “Sei de tanta coisa, porque vejo o mundo daqui. Bela lição, não?” Ele andou lendo alguns livros do Paulo Coelho? “Olhe mais uma vez. Vê o rio? Impassível, ele corre sem se importar com as pedras, porém numa entrega no mar infinito. Vê...” Azar do pobre lagarto, estava cansado de ver e ouvir essa anestesia briosa, e por isso pisei nesse sonho que sangrou como a realidade e se foi abismo abaixo direto para o mar infindo de todas as burrices humanas.

E chove aqui dentro também...

Nunca fez tanto calor no verão desta cidade quente.. Efeito de todos os efeitos: estufa, aquecimento, niño, descongelamento. Todos ao mesmo tempo e com um único e funesto resultado: um imenso, um brilhante, um escaldante Sol sorridente.
Na esquina, naquele sobrado, só para negar o que diz e sente a maioria e ser tachado de insano, chovia torrencialmente. A construção era muito elegante, arquitetura antiga de fachada verde-claro. No jardim da frente várias plantas verdinhas que davam até gosto, também com tanta chuva... Eram riscos de água sobre o carpete, móveis de madeira de lei estufados pela umidade incessante. Coisas e coisas que a chuva sempre estraga...
“Vanda, onde está A lira dos vinte anos?” gritava Antônio de dentro de seu amplo quarto nublado. “Na janela secando, seu bobinho!” respondeu Vanda que brincava na chuva gelada do hall, suas mãos estendidas para o alto recebiam-na como uma anfitriã. Aquilo tudo não a incomodava, ela adorava a água, apesar de todos os estragos, já tinha se acostumado com o tempo instável e em como driblar cada uma das artimanhas da chuva incessante.
Entretanto, nem Antônio, nem Osório e um pouco menos Cândido, os outros moradores do sobrado, gostavam da chuva que os assombravam. “O corredor ainda está encharcado! E você sabe que não posso me molhar...” gritava mais uma vez Antônio de volta para Vanda que agora estava deitada no chão do hall para receber as gotas em seu rosto. Seu sorriso branco recebia o frescor de todo esse pesadelo úmido sem nenhum pesar. “Me dê mais cinco minutos e pego seu livro, Antônio...” Ele bufou e Osório gargalhou, ria da situação úmida de seu companheiro, pois seu quarto estava seco, fazia dois dias que não chovia por lá, gargalhava porque hoje estava por cima, entretanto passou maus bocados nos últimos dias: chuva, neblina e muito papel perdido, muitas linhas borradas.
Cândido, apesar da chuva da sala de estar que separava o hall do corredor dos quartos, gostava mais do corpo de Vanda todo molhado e nu, o buraco da chave era perfeito para observar seus seios que também recebiam a água tão pura e inocente como seu sorriso. Vanda, é claro, sabia de Cândido, porque ele ofegava inconfundivelmente, o que ela adorava, por saber que seu corpo era igualmente inconfundível. Em segredo, ela gostava de ser adorada e só era adorada porque a chuva a deixava mais e mais excitada.
Finalmente, levantou-se e lentamente vestiu sua roupa que molhou-se com as gotas do hall, ela nem se importou, foi até a janela, pegou a Lira, envolveu-a num saco plástico e levou até Antônio. A roupa molhada colou-se ao seu corpo, seus seios saltados perturbaram visivelmente Antônio e sua fragilidade: “Vamos até o hall tomar um banho de chuva?” Seu pedido era provocante, mas petulante para um homem naquela condição: “Não sarei daquela gripe da última vez!” Osório novamente gargalhou do outro quarto, nesse quesito sempre esteve por cima. Porém, Vanda tinha uma quedinha pela doença de Antônio e não pelo bom humor de Osório.
Cândido agora recuperado da chuva no hall seguiu para a fechadura do quarto de Antônio, sua esperança não se concretizou em prazer, era hora de se secar ou acabaria como seu amigo. Depois de se secar era só esperar, esperar e esperar... Sabia que Vanda era insaciável e que Antônio hora ou outra cairia em tentação.
O tempo é imprevisível. Chuva no quarto de Osório e falta de gargalhadas. Neblina no hall. Cândido em pranto por falta de prazeres recônditos. Vanda era, a cada mudança climática, volúpia revoltada. Antônio espirava, tossia e se embebedava no prazer de sua molhada amante. “Antônio, poeta maldito, que também morresse logo de pneumonia” era o que Osório mais desejava. E o Sol? O Sol continuava impossível lá fora...

Testamento


Os meus dedos eu deixo para Paris
Os meus olhos para Veneza
A minha pele para os Africanos
A minha carne para Roma

Os meus sentidos para os párias
E minha loucura para a poesia
Meu desejo para os vulcões
E minhas palavras para o vento.

E meu coração deve ser queimado
e espalhado por Zéfiro.







De bellum urbem


Olhando para fora do ônibus
Escorre pela janela
Viscoso e pulsante

Trapos nas ruas
Ganhando o mofo do dia
Escárnio e resto

Multiendinheirados blindados
Secando por dentro
Nojo e afeto

Letrados cansados
Descaso pelas formas mortas
Poesia e piedade

Homens e mulheres
Em meio ao vômito social
Fogo e estampido

Dentro do ônibus
A música embotada
Desarranjo e harmonia

Discussões e muito choro
“Não pare o ônibus”
Pedido e medo

Palavras

tem palavras que cansam
de tão garrafais
sovadas na tela
nos cantos
nos quintais

Palavras solares

Todas as palavras irradiam.
Som, letras e formas.
Amanhece o frescor de se dizer,
é a palavra entrando pela janela
perturbando os olhos remelentos,
despertando Aquilo no ser,
calor aos ouvidos.
Aquecimento interior.

Entardesse o dia com suavidade,
palavras e brisa,
os seres já se preparam,
catam seus pertences e vão.
A palavra iluminou as horas,
os anseios,
já mostrou outras faces e
outros desejos.

Mas o Sol gira! a Terra gira!
As palavras tontam...
anoitecesse e só resta silêncio.
Dissom, disletras e disformas.
Não há poder para se quebrar o silêncio por falta de Sol.
Não há palavras sem luz.
Só resta o silêncio esperançoso.
O Sol gira, a Terra gira,
E as palavras remontam a épica da própria luz.

um pouco sobre mim e os outros

onde a realidade diafana
todos temem
é a linha tênue

não que todos sonhadores
às vezes inventores
outra até Deuses

já não temo mais
certo pelo incerto
e reverso

clara visão turva
acostumada ao espanto
às vezes não tão irreal

muitos pensam em sensibilidades
engano
há artistas sensíveis

diria um pouco de atenção
pois este mundo
abunda...

Ofício primordial


silente som sinal
forja fogo as formas
pinga 'i's salamandras
som em princípio total

à espera, sou som difuso
da hora trevosa das letras
o poeta então aparece
igneo soprador elemental

Nós e nós


De nó em nó desatando,
Fio por fio as amarras,
Problemas por problemas para ver,
enfim, o fim libertar

Cansado de gostar do desgosto,
De um mundo salgado e amargo
Decepção pelo vão em vão

Não se pode chorar e implorar,
O que muda é um e não todos,
hora de coragem

Já pintamos, escrevemos e cantamos,
tantos descontentamentos,
Não seria então a hora
de ser nós?
prefiro ver assim
de olhos fechados
mundo em possibilidades
do que ver o fim
gira mundo gira

Dormência

eu durmo o sono dos injustos
sabendo o que sei
comendo o que como
errando utopias

ele não
dorme justamente
não comendo não sabendo
errando vida

Sorriso na janela

o quarto escuridão
sorriso luz na janela
pesar desejo e uma
pequena centelha
sorriso na imensidão
todos vêem, todos sabem
todos sofrem
é visivel no fundo
salvação em sorriso

A luz dos bobos

O que te dilaceras a alma?
A dúvida?
Sinto me culpado...
por minha luz
e sua infelicidade.
Abre a janela!
E deixa a mesma luz entrar.
É ela que encanta os bobos,
sim eu sei, mas luz.



Ad Sommia

Arrastado em lodaçais
de Verdades
Minha carne esfola
em pedras mentirosas.

Mas minha anima
é concisa.
Inatingível.
Perfectível.

E minha anima fala:
"Prefiro viver o sonho."

Divã


Na análise crucial
Somente fatos
Intricáveis
E desligados

mas... sempre há
Por que?
Feliz ou infelizmente
Ainda cedo
Nâo sei!